O
ESPÍRITO LIBERAL DE 1776
“Os EUA comemoram hoje o
bicentenário da Declaração de Independência. A nação que o mundo teme,
respeita, inveja, admira ou detesta evolui aos poucos, sendo ao menos
argumentável que se consolidou, no sentido moderno do termo, depois da Guerra
Civil de 1861-1865, em que a autonomia dos Estados, uma das premissas básicas
da Revolução de 1776, foi substituída pelo poder central, pelo conceito de
união indissolúvel.
Essa guerra nos deu muitos mitos,
populares até nos EUA, O mais conhecido de todos, naturalmente, que o “Norte”,
sob Abraham Lincoln, lutou para emancipar os escravos negros. Lincoln libertou
os escravos em 1863, os do Sul, mantendo durante algum tempo a escravidão em
territórios favoráveis à união.
Um dos documentos mais sutis e
profundos da história norte-americana é o discurso de Jefferson Davis,
presidente dos secessionistas, quando da “revolta”, pois põe a nu a hipocrisia
antiescravagista de Lincoln e os interesses econômicos por trás da retórica
patriótica e libertária.
A guerra ia incerta. Era
constitucional que qualquer Estado se desligasse da união, quando bem
entendesse. Estabelecido o recrutamento compulsório, em 1863, houve motins
violentos. Um, em Nova York, provocou a morte de mil pessoas. Lincoln deu um
molho liberal à luta.
Todo país vive, em parte, de
mitos, homens até morrem por mitos, e a justiça da causa sulista e os motivos
que levaram Lincoln a proclamar a emancipação não mudam a realidade de
libertação dos escravos ou sequer a qualidade da retórica de Lincoln, que
recebeu a aprovação do maior homem de letras que o país produziu, Edmund
Wilson, cuja obra Patriotic Gore [1962] é indispensável à compreensão dos EUA.
É interessante que os EUA e a URSS
sejam os únicos países do mundo criados por intelectuais, em vez de reis, príncipes,
padres ou bons burgueses. A Carta de Direitos (os dez primeiros artigos da
Constituição) permanece um modelo de libertarismo que sugere ideais
sobre-humanos, assim como a visão de mundo leninista, em que “Estado e
Revolução” são uma promessa utópica jamais sonhada pelos meros beletristas do
gênero, de More a Wells. Entre teoria e prática, há, claro, abismos, mas talvez
o impulso de poder e autossuficiência das duas nações se deva, até certo ponto,
às origens eminentemente intelectuais. Cessam aí as semelhanças.”
EVOLUÇÃO
OU REVOLUÇÃO
“A riqueza de 1776, em inspiração
liberal para o resto do mundo, da Revolução Francesa (incomparavelmente mais
profunda) à busca de soberania no resto das Américas, dispensa comentários. É
preciso notar, porém, que as colônias, como eram conhecidos os doze Estados que
fundaram os EUA (Massachusetts, New Hampshire, Rhode Island, Connecticut, Nova
York, Pensilvânia, Nova Jersey, Maryland, Virgínia, Carolina do Norte, Carolina
do Sul e Geórgia), pouco tinham em comum com o que, hoje, entendemos por
“colônias”. Se fiéis à Coroa inglesa, se declararam logo independentes do
Parlamento em Londres. Elegiam os próprios governadores-gerais e deputados.
Dispunham de uma imprensa livre. Consideravam-se associadas e não dependentes
da Inglaterra, o que já é sensível nos documentos existentes sobre Jamestown,
fundada em 1607. A mais famosa, estabelecida entre 1630 e 1642, na Nova
Inglaterra, trouxe ao Novo Mundo os chamados puritanos, que viam na terra uma
nova Canaã, superior moralmente à “dissoluta” matriz.
Um dos grandes controversistas
americanos, Gore Vidal, numa alusão à “caça às feiticeiras” – que permeia a
história dos EUA -, nota, ironicamente, que, ao contrário da lenda, os
puritanos não foram perseguidos na Inglaterra. Deixaram-na porque a Coroa não
permitia que perseguissem o próximo.
E, tão importante, o cerne étnico
da colonização jamais possuía a pureza anglo-saxônica, que virou também mito.
Os EUA receberam, de início, uma população cosmopolita, holandeses, alemães, anglo-irlandeses
(protestantes), franceses (huguenotes), escoceses, suíços, judeus, escandinavos
e os esquecidos e subjugados negros. Essa mistura de povos e raças e as
dificuldades tremendas que os colonizadores encontraram, tendo de resolvê-las
por si próprios, criaram uma consciência especificamente americana.
Não é, portanto, correto pensar
que em 1750, quando as divergências entre Londres e colônias começaram a
explodir, homens de gênio como George Washington, Thomas Jefferson, George
Mason, Alexander Hamilton e Benjamin Franklin desceram, de súbito, das árvores,
armados da filosofia liberal de John Locke e da concepção de Estado de
Montesquieu. Seis das maiores universidades do pais, Harvard, Yale, King’s
College (Columbia), Princeton, Brown e Dartmouth, são pré-revolucionárias e
educaram uma sofisticada classe dirigente “nativa”. No período, publicavam-se
mil títulos ao ano, produção que, até hoje, faz inveja a muita nação
subdesenvolvida.
Esquecido também é que, durante o
século XVII até 1763, a França disputou o controle do continente
norte-americano, deixando profundas marcas na cultura nacional, até que foi
derrotada no Canadá. Nova Orleans, Detroit e Mobile (Alabama) foram
colonizações francesas e, mais importante, pela fertilidade, o vale do Ohio. Os
colonos sentiram a própria força numa série de combates ferozes, contra
franceses aliados aos índios, e partilhavam o comando das tropas com generais
ingleses. Beneficiaram-se também da introversão da Inglaterra, de 1640 ao fim
do século, um período altamente revolucionário, a era de Cromwell.
Logo, o 1776 foi mais evolução do
que revolução. Significativamente, quando a Inglaterra decidiu tratar os
colonos como tais, pela primeira vez, taxando-os e tentando confinar-lhes e
controlar-lhes o comércio, é que eles se rebelaram.”
CARTA
DE DIREITOS
“A Constituição dos vitoriosos,
ratificada pelo nono Estado (New Hampshire: nove era o número necessário para
que valesse) em 1788, entrou em vigor em 1789. Continha sete artigos. Foi se
expandindo ao correr do tempo, estando longe de ser, portanto, o “documento de
uma sociedade agrária”, como a apelidou desdenhosamente Richard Nixon. Basta
dizer que a Carta de Direitos só recebeu a ratificação de Massachusetts,
Geórgia e Connecticut em 1939, às vésperas da Segunda Guerra.
Por trás do liberalismo abrangente
havia duas concepções de Estado em conflito. A de Jefferson, que previa uma
“livre associação de Estados”, em que cada homem (branco) fosse senhor de sua
terra, cultivando-a em paz e liberdade. E a de Alexander Hamilton, que propunha
um sistema federal centralizado, em suma, os EUA de hoje. Jefferson derrotou
Hamilton nas polêmicas da época, da mesma forma que Rosa Luxemburgo bateu
Eduard Bernstein no debate entre revolução e reformismo, na Alemanha de 1900.
Em outras palavras, o derrotado em teoria estabeleceu a prática. Jefferson, ao
assumir a Presidência em 1801, já era hamiltoniano e, no mesmo ano, a
incipiente Marinha norte-americana procurava negócios nas costas da África, sob
o pretexto de perseguir piratas. Começara a expansão nacional e imperial.”
O
SÉCULO DECISIVO
“Em cem anos, até 1900, os EUA
passaram de uma próspera colônia à maior potência industrial do mundo. A partir
da compra da Louisiana (da França), em 1805, não importa qual a fraseologia
empregada ou o invólucro autoexculpatório, seja “Doutrina Monroe” (1823) ou
“Destino Manifesto” (de criar uma sociedade superior às demais; a concepção
original e teocrática, de 1630, traduziu-se sem dificuldade ao mundo
material…), o país se tornou imperial. Em 1848, anexou mil milhas quadradas do México
(Utah, Nevada, Califórnia, Arizona, Colorado Ocidental e Novo México), pagando
uma soma ridícula, 15 milhões de dólares. Em 1898, na guerra contra a Espanha,
se apossou de Cuba, Porto Rico e estendeu-se às Filipinas, iniciando o avanço
mundial, cujo primeiro fruto foi o controle da América Central e uma influência
decisiva em toda a América Latina (já reservada aos EUA na linguagem ambígua da
Doutrina Monroe).
Internamente, a consolidação
nacional também se processou a ferro e fogo, em guerras de genocídio contra os
índios, no uso cruel do trabalho escravo negro e na exploração de mão de obra
barata dos imigrantes europeus. É significativo, em relação ao mito da origem
étnica anglo-saxônica, que, de uma população de 225 milhões, em 1976, apenas 30
milhões se declarem descendentes dos ingleses.”
O
AVANÇO DA DEMOCRACIA
“As mulheres só obtiveram o voto
em 1920, e os negros foram excluídos oficialmente do processo político até a
guerra civil e “informalmente” até a década de 1960. E vale notar que o
conceito jeffersoniano de democracia, apesar das beatitudes filosóficas
libertárias e de muito palavrório sobre os direitos do homem “comum”, era, em
verdade, aristocrático, dando o voto em relação à propriedade do eleitor,
excluindo, portanto, a maioria do povo. A reforma começou em 1830, sob o
presidente Andrew Jackson, grande massacrador de índios, porém, em revolta
contra a supremacia das grandes famílias, das quais a mais famosa é a dinastia
de John Quincy Adams (ora glamourizada numa asnática série de televisão).
Jackson abriu as porteiras à ralé, “terminando o nosso mundo”, observou o poeta
e elitista americano T. S. Eliot.
A famosa frase de Jefferson na
declaração de independência sobre os direitos do ser humano, “vida, liberdade e
procura da liberdade”, era, no original, “vida, liberdade e propriedade”.
Jefferson mudou-a aconselhado por George Mason, o inspirador da Carta de
Direitos; “Felicidade” é um conceito vago numa nação que sente os próprios
músculos e os flexiona em todas as direções possíveis, derrubando obstáculos.
Os mais fracos pereceram, como os índios (quatrocentos tratados entre brancos e
índios. Todos, sem exceção, rompidos unilateralmente pelos brancos), ou foram
submetidos a humilhações indizíveis, como os negros.
O século XIX, porém, foi a era de
ouro do capitalismo liberal e nenhuma potência importante se desenvolveu de
maneira muito diferente. Vale dizer que um dos admiradores das “cirurgias
radicais” da elite branca dominante contra índios, mexicanos e negros era Karl
Marx, sempre favorável a que o capitalismo se expandisse aos limites possíveis,
antes do advento do socialismo.
E seria ignorância supor que não
houve resistência interna, intelectual, humanista, contra as violências
peculiares à época. Escritores como Mark Twain, Waldo Emerson e Henry Thoreau
castigaram verbalmente o imperialismo e a crueldade do sistema na acumulação de
riquezas. Harriet Beecher Stowe, em A cabana do Pai Tomás [1852], levantou a
consciência abolicionista da nação e do mundo.
O ideal democrático, nos tumultos
do século XIX, sempre coexistiu com o expansionismo interno e externo.
Eugene Debs, líder socialista,
obteve boa votação quando candidato à Presidência, no início do século XX. Em
1932, o socialista Norman Thomas foi candidato, com apoio expressivo da
intelectualidade.
Ideias radicais que transcendessem
o liberalismo de 1776 nunca, porém, vingaram, e até hoje os EUA são o único
país industrializado sem um movimento esquerdista consolidado em partidos e
sindicatos operários.”
POTÊNCIA
IMPERIAL
“Se os EUA já eram a maior nação
industrial do mundo em 1960, disputando mercados imperiais com as competidoras
europeias na China, Japão e América Latina, o centro político permanecia na
Europa, particularmente o Império Britânico, dominando 500 milhões de pessoas e
uma extensão de terra que deu origem à frase de que “o sol nunca se põe” sobre
a bandeira inglesa. O capitalismo liberal europeu, porém, se despedaçou na
guerra de 1914-1918, permitindo que os EUA “apanhassem os pedaços”, ao entrar
no conflito em 1917, quando os adversários estavam esgotados de recursos e
moralmente arrasados.
O “problema soviético” emergia
somente no pós-guerra de 1945. O presidente Woodrow Wilson, que levou os EUA à
chamada Grande Guerra, é a figura dominante do período. Propôs o
internacionalismo, que, até hoje, 1976, é a política externa do país. Wilson
via um mundo à maneira norte-americana, povoado de democracias representativas,
liberto de esferas de influência (a causa das guerras, segundo o presidente),
aberto ao livre comércio, que aproximaria os homens pelos interesses em comum.
A imagem é bonita e não há dúvida
de que foi, em parte, baseada em convicções sinceras. A realidade, porém, era e
é diferente. Já em 1919 a democracia representativa estava longe de ser a forma
de governo preferida pela maioria das elites dirigentes do mundo. E o “livre
comércio”, dada a superioridade industrial dos EUA, significaria, na prática, a
hegemonia de Washington, que, de resto, emergiu do conflito credora de
praticamente todas as nações envolvidas. E obrigaria os velhos impérios,
Inglaterra e França, a desmontar o sistema autárquico e protecionista pelo qual
mantinham as respectivas colônias.
A visão de Wilson também não
correspondia à própria realidade do continente americano. Os EUA mantinham as
mais altas tarifas protecionistas do mundo, na época, e queriam preservar a
parte da Doutrina Monroe que lhes interessava, a não interferência europeia nas
Américas, quando já haviam infringido outra componente da doutrina, a que
haviam descartado na guerra, o não envolvimento dos EUA na Europa.
Os líderes econômicos
norte-americanos, a comunidade de negócios, fizeram coro com Clemenceau e Lloyd
George, rejeitando o curioso e seletivo idealismo wilsoniano. Daí o mito do
“isolacionismo”, entendido como abstenção dos EUA dos assuntos mundiais,
quando, em verdade, quer dizer apenas desligamento político, pois as multinacionais
se expandiam em todos os continentes, querendo evitar, isto sim, acordos
diplomáticos que lhes restringissem os movimentos.”
ISOLACIONISMO
“A Depressão de 1929 foi, em
grande parte, causada pelo que Wilson abominava, esferas de influência que se
traduziam em sistemas econômicos fechados, protecionismo, a luta anárquica por
matérias-primas, a falta de coordenação do comércio mundial, a inexistência de
uma comunidade mundial que gerisse harmoniosamente os recursos da Terra em
favor das potências industrializadas e a praga corrosiva do nacionalismo.
Franklin Roosevelt, presidente de
1933 a 1945, encaminhou os EUA à hegemonia mundial e à reforma interna. O New
Deal, o programa rooseveltiano, adotou ipsis litteris a visão internacionalista
de Wilson, ao mesmo tempo que lançou os alicerces do Welfare State no país,
criando a previdência social, o seguro contra o desemprego, e estendeu as
franquias democráticas do povo. Foi um fracasso no sentido de que não resolveu
o problema estrutural da Depressão (em 1940, os EUA enfrentavam 15% de
desemprego), minorando apenas, pelo reformismo, a miséria social.
Em 1937, num agravamento da crise
econômica, Roosevelt pronunciou o famoso discurso “Quarentena para os
agressores”, a plataforma da política intervencionista que os EUA seguiriam a
partir de 1941. Os “agressores”, naturalmente, eram Hitler, Mussolini e
Hiroíto, nacionalistas ressentidos, derrotados direta ou indiretamente em 1918,
que exigiam agora um lugar ao sol, usando violência se necessário, num mundo
devastado pela Depressão e, mais grave, sob ameaça de uma revolução das massas
no modelo do abominado bolchevismo.
O discurso foi mal recebido nos
EUA, pois a concepção de expansionismo econômico sem amarras políticas, o
“isolacionismo”, continuava dominante. Os acontecimentos, porém, trabalhavam a
favor de Roosevelt.
A guerra europeia de 1939, em
1941, se tornou mundial, atraindo os EUA, a URSS e o Japão. A aliança entre
EUA, URSS e Inglaterra foi um casamento de conveniência que se desfez
rapidamente na realidade da paz. Stálin queria segurança no Leste Europeu, em
suma, uma esfera de influência soviética. Churchill pretendia, cego à ruína
econômica inglesa, manter o império e o sistema de “bloco da libra”, que
obrigava colônias e domínios a negociar exclusivamente em termos favoráveis à
Inglaterra. Uma quimera que a necessidade inglesa de obter auxílio dos EUA,
quando sozinha em face da Alemanha, destruiu rapidamente, tornando a
Grã-Bretanha sócia menor de Washington, condição em que se encontra até hoje.
A URSS era diferente. Venceu a
guerra na Europa, arcando com 70% da luta contra Hitler, o que fica evidente
nos documentos da Conferência de Ialta (fevereiro de 1945). Estabeleceu seu
sistema no Leste Europeu. O resto do mundo caiu sob controle americano, ao
menos até que ocorressem as revoluções chinesa, cubana e vietnamita.
O enriquecimento dos EUA na
Segunda Guerra pode ser aferido pelos seguintes dados: em 1941 o PIB do país
era 96 bilhões de dólares: em 1942,122 bilhões: em 1943,149 bilhões; em
1944,160 bilhões. Hoje, é 1 trilhão e 300 bilhões, dobrando praticamente a cada
ano do pós- guerra.
Roosevelt montou, em Dumbarton
Oaks e Bretton Woods, os sistemas político (Nações Unidas) e econômico (Banco
Mundial etc.) em que se alicerçaria a hegemonia americana. Se atas de
conferência valem alguma coisa, sem falar de extensos estudos históricos
disponíveis, Roosevelt pretendia respeitar algumas aspirações soviéticas a uma
esfera de influência no Leste Europeu. Não viveu o bastante para que saibamos,
com certeza.
O sucessor, Harry Truman
(1945-1953), inseguro, temeroso de que o desmantelamento da economia de guerra
trouxesse de volta a Depressão e armado da “invencível” bomba nuclear, então
monopólio dos Estados Unidos, interpretou diferentemente o acordo (ambíguo, é
verdade) de Ialta e resolveu enfrentar a “ameaça soviética”. Nenhum
estrategista norte-americano previra que a Europa Ocidental, devastada pelo
conflito, se sentisse atraída a modelos socialistas de recuperação, o que
aconteceu entre 1943 e 1947, quando então a influência dos EUA e programas de
rearmamento (Otan) e recuperação econômica (Plano Marshall), sem falar da
Doutrina Truman, de 1947, que prometia intervir em qualquer canto do globo sob
risco de subversão, contiveram o surto revolucionário. O preço foi a divisão
permanente da Europa, oficializada em Helsinque, 1975.”
AUTOCRÍTICA
E RECUO
“Se a hegemonia dos EUA não foi
total, pós-1945, não há dúvida de que se imprimiu na maior parte do mundo, toda
aquela, de resto, que não caiu sob controle comunista. O país prosperou de
maneira estupenda, dobrando o PIB de 1950 a 1960, de 1960 a 1970, enquanto
missionariamente bloqueava surtos nacionalistas que suspeitava fossem de origem
ou em proveito da “outra igreja”, com base em Moscou.
Uma guerra entre nações
industrializadas se tornou difícil depois que a URSS atingiu paridade nuclear
com os EUA. A luta ideológica se transferiu para o Terceiro Mundo, onde está
até hoje. Não há vitoriosos. Ambos os blocos podem apontar sucessos e
fracassos.
Nos EUA, porém, a partir da guerra
no Vietnã, um intenso movimento de autocrítica está em curso. Os horrores do
conflito penetraram em todos os lares americanos pela televisão em cores. A
tenacidade dos vietnamitas, um dos povos mais pobres da Terra, enfrentando a
maior máquina militar e tecnológica da história, chocou profundamente o povo
americano. O liberalismo da sociedade permitiu que a crítica virulenta às
premissas básicas da política externa de Washington tivesse ampla divulgação, o
país rachou entre intervencionistas e não intervencionistas, tema que sublinha
a campanha eleitoral de 1976.
Se isso não bastasse, o escândalo
de Watergate, em 1972, levando à renúncia, pela primeira vez na história, um
presidente, revelou insuspeitadas vulnerabilidades no sistema, em sua ação
interna.
Essas crises certamente diminuíram
muito o sentimento anticomunista, que beirou o patológico, entre 1949 e 1956.
Isso não significa que haja simpatia pelo comunismo. Ao contrário. O PC tem 100
mil membros nos EUA. O regime soviético é visto como uma monstruosidade
totalitária.
Há, porém, maior tolerância pela
diversidade do mundo e uma repulsa forte à tese de que os EUA devem determinar
o rumo a ser seguido pelos outros países. O espírito liberal de 1776 se
reafirmou em face dos desastres na Indochina e de Watergate.
A própria elite dirigente parece
ter reconhecido os limites do seu poder. Esse é um dos significados da política
de détente, “negociar em vez de confrontar”, só não aceita, e de boca, por um
dos candidatos à Presidência de 1976, Ronald Reagan.
O quadro mundial mudou
completamente. Hoje, os EUA e as demais nações capitalistas industrializadas
enfrentam uma rebelião, anárquica e contraditória, porém inequívoca, do chamado
Terceiro Mundo, fornecedor passivo no século XX de matérias-primas e mercados,
em troca de muito pouco. O símbolo dessa rebelião, encabeçado por nações na
maioria conservadoras, é a Opep. Os EUA dizem-se dispostos a negociar. É
provável que não exista alternativa.
O país, porém, está mais próspero
do que nunca, prevendo-se em 1976 um crescimento real de 7% sobre um PIB de 1
trilhão e 300 bilhões de dólares, depois de vencida a recessão de 1974- 1975.
Os americanos produzem mais e consomem mais que dois terços da humanidade. E
gozam do sistema político mais livre do mundo. Têm muito por que se
autocongratularem.
Existe consciência de problemas
sociais profundos. Nenhum é insolúvel. É possível integrar o negro, a mais
alienada componente da sociedade, às benesses que já se tornaram rotineiras
para a classe média branca. Basta haver liderança. Virão com certeza um seguro
médico nacional, uma garantia de emprego a cada cidadão apto e outros
aperfeiçoamentos do Welfare State inaugurado por Franklin Roosevelt.
A maioria do povo permanece fiel
ao sistema, se bem que um número crescente de pessoas lhe nota as deficiências
internas e privilégios incompatíveis com uma ordem mundial em que a justiça
prevaleça. O país, porém, é jovem e nunca revelou incapacidade de aprender. E o
povo, o que é mais importante, nunca permitiu que lhe roubassem o direito de
pensar e agir livremente.”
Paulo Francis (Rio de Janeiro, 02-10-1930)
foi um intelectual completo e um grande polemista.
Começou sua carreira como crítico de teatro
e pouco a pouco foi-se transformando
no articulista mais eclético e mais influente
de toda a história da Imprensa Brasileira.
Trabalhou na Tribuna de Imprensa, no Correio da Manhã,
no Jornal do Brasil, na Folha, no Globo, no Estadão
e também nas revistas Senhor, Status e Bravo!
Francis morreu na cidade de Nova York
em 04-02-1997, há 22 anos
Começou sua carreira como crítico de teatro
e pouco a pouco foi-se transformando
no articulista mais eclético e mais influente
de toda a história da Imprensa Brasileira.
Trabalhou na Tribuna de Imprensa, no Correio da Manhã,
no Jornal do Brasil, na Folha, no Globo, no Estadão
e também nas revistas Senhor, Status e Bravo!
Francis morreu na cidade de Nova York
em 04-02-1997, há 22 anos
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