Tuesday, September 17, 2019

SOMOS TODOS ESTRANGEIROS (uma Bofetada do Passado de Ivan Lessa)




Estrangeiro é o bairro em que moramos, estrangeira é a mulher que encoxamos no elevador, estrangeiros são nossos pais, nossos filhos. Nunca me senti em casa no Brasil, ninguém está em casa no Brasil: todo mundo foi até a esquina, todo mundo foi tomar um cafezinho. Achava que, de uma maneira ou de outra, eu estava embromando ou sendo embromado por alguém. Que viver não era nada daquilo, que eu não tinha nada com o peixe, que os verdadeiros brasileiros estavam misteriosamente ocupados com seus sofrimentos, ou então atarefados criando um Brasil melhor: gente andando rapidamente nas ruas da cidade, ou cavando uma terra dura e ingrata. Os brasileiros eram abstratos, distantes, mais calados do que comumente se supõe. Conheço algumas vozes brasileiras: gostaria de saber escrever na tonalidade do Jorge Veiga, ou do Moreira da Silva, misturada a uma retórica aborrecida e às avessas semelhante à de Ruy Barbosa — como o Hino à Bandeira acompanhado de caixinha de fósforos. Os sambinhas, claro, eram brasileiros, o pessoal que sentava ao meu lado no Maracanã era brasileiro, as piadas de papagaio eram brasileiras. Mas tudo era de mentirinha, beirando sempre o pitoresco ou se precipitando na tragédia policial ou no editorial dos jornais. A vida a sério, os seis quarteirões em que me locomovia, as seis pessoas com quem convivia não eram, digamos assim, bem brasileiros — assim como eu, tinham máquina fotográfica a tiracolo e camisas com palmeiras.

Em tudo que eu engolia ficava uma ponta de tradução atravessada em minha garganta: os filmes com legendas em português, as histórias em quadrinhos, os livros, as notícias; os foxes. Éramos uma versão pobre do que a vida deveria ser — e a vida vinha sempre em inglês, em francês, em alemão. Mesmo quando dizia “eu te amo”, ou “não me chateia”, eu me sentia vagamente ridículo, apropriador — feito um homem de série da televisão mal dublado: minha boca fechada e as palavras ainda saindo, um ventríloquo com descontrole psicomotor.

Reconheci, pelo paladar, pelos olhos, certos molhos, certas bossas tipicamente brasileiras (o problema é que eram típicos): feijoada, dendê, folha seca de Didi, Noel Rosa, escola de samba. Mas a essência, a parte que tratava de mim (nos meus seis quarteirões, na cidade no sul do país) e de minha relação com os severinos todos, essa parte era sempre tratada em outra língua; eu pertencia aos estrangeiros, foram eles que me disseram como vim a fazer parte ou como nunca fiz parte. Eu era, como todo brasileiro, um improvisador, um adaptador, um tradutor, conseqüentemente um traidor — porque eu olhava para a cara de meu semelhante e não sabia como poderíamos nos entender, o que ele tinha a me dizer, o que eu poderia lhe dizer, como juntos conseguiríamos nos salvar. No entanto, o tempo todo, eu era, eu sou, apenas mais um João, só que em russo.


Não consegui, como tanta gente de minha geração ou mais moça do que eu, me interessar pelo folclore caboclo. A própria palavra folclore já leva embutido um desaforo urbano. No entanto, achava que o setor, devidamente estudado por profissionais competentes, me seria útil, me forneceria, por exemplo, dados para escrever com justeza para um público moço que vive de cinema, disco e que sabe, curiosamente, que há uma tremenda safadeza, uma violência no ar. Não lia, portanto, O Negrinho do Pastoreio — o que já preparava o terreno até para eu deixar de ler Machado de Assis ou Dalton Trevisan. Comprava pocketbooks, que eram mais baratos, mais engraçados, e, de certa forma, sobre mim, a meu respeito. Preocupado comigo mesmo, com esse “meu respeito”, descobri-me sozinho no meio da avenida repetindo eu... eu... eu... como um pronome enguiçado que não consegue engatar a segunda e a terceira do singular. Perdi os joões, os josés, os severinos, vim para o original, o estrangeiro, dando início a uma certa paz, tranqüilidade, a noção de ordem: as legendas acabaram, sou finalmente, completamente, um estrangeiro. Posso agora conjugar-me no plural, dizer nós. Somos todos estrangeiros, sois todos estrangeiros, são todos estrangeiros. Não há nada a fazer a não ser descobrir esse estrangeiro que há na gente. Daí então a gente começa a falar brasileiro, coça o saco, conta como é que é. Daí então o papo, aquele papo, pode começar. Só que agora pra valer.

Carta de Ivan Lessa para O PASQUIM
Londres, 7 de setembro de 1970


 Foi Ivan Lessa quem criou a frase
"Deus criou o sexo e Freud a sacanagem"
e a colocou na boca do ratinho Sig,
sua imortal criação, mascote do semanário ipanemense O PASQUIM,
que Ivan ajudou a fundar antes de mudar de mala e cuia para Londres
e nunca mais voltar ao "Bananão".
Ivan, por incrfível que pareça, nasceu em São Paulo.
Filho dos escritores Orígenes e Elsie Lessa,
ele foi tradutor, publicitário e cronista para vários jornais
e revistas brasileiros, além da BBC-Brasil.
Morreu de enfisema pulmonar na sua querida Londres,
onde viveu mais de 35 anos,
em junho de 2012, aos 77 anos de idade.
Deixou uma obra extensa e confusa,
que está sendo devidamente organizada
por seu velho amigo Sérgio Augusto.



48 CAPAS MEDONHAS PARA LPS INCLASSIFICÁVEIS #3
















Monday, September 9, 2019

O DIA DO GOLFINHO... (uma LEITURA DE BANHEIRO de NATALIA NODARI)



Me disseram que na na década de cinquenta uma mulher batia punheta para um golfinho em um aquário construído pela Nasa.

É claro que no começo não foi assim. No começo os cientistas buscavam uma golfinha para que o golfinho esvaziasse o pau dentro. Mas não era isso que ele queria, e se ter fome de doce e ser obrigado a comer salgado é uma das piores coisas que pode acontecer a um ser humano que tem sorte, quem dirá a um golfinho da Nasa. O objetivo do experimento era fazer o golfinho falar inglês. Americanos na década de cinquenta acharam que se mexicanos conseguiam essa proeza, quem dirá animais que eles valorizavam mais. O golfinho e a mulher dormiam juntos, acordavam juntos e comiam juntos em uma espécie de aquário hotel. A mulher era bonita e jovem e tinha pernas firmes e o golfinho era

bom,

era um golfinho. Durante as aulas de inglês ele colocava o pau para fora e se esfregava contra as coxas da mulher como uma criança que não consegue alcançar os bibelôs de vidro da prateleira da avó. Concluíram que o golfinho tinha se apaixonado e recomendaram que a mulher tocasse uma para ele para que tudo se resolvesse mais rápido. Transportar uma golfinha toda vez que o golfinho tirava o caralho pra fora do corpo era trabalhoso demais, e além disso, os cientistas concluíram que o golfinho estava apaixonado, já que eram todos cientistas homens e quando um homem quer enfiar o pau nos buracos de uma mulher, chama isso de amor.

A moça passou um ano entre punheta e aula de inglês. Trezentos e sessenta e cinco dias depois duas mil crianças mexicanas que tinham cruzado a fronteira de madrugada já falavam inglês fluentemente, e o golfinho seguia mudo e os cientistas ficaram envergonhados e tiveram medo que os russos começassem a fazer piadas envolvendo o golfinho Flipper e filmes pornô. Demitiram a moça que tocava punheta e recitava o ei-bi-ci e colocaram o golfinho num tanque.

O golfinho esperou pela volta da moça e depois pela volta do peixe e depois pela volta de alguém que tocasse nele

e não vindo ninguém, se matou e o que me deixa mais triste é saber que nessa história eu sou o golfinho. Nessa história você nunca deveria ter encostado a mão no meu corpo e nem me ensinado uma língua que não tinha como caber na minha boca. Como todo golfinho, eu não fui ensinada a bater de volta

como todo golfinho, eu fui treinada para ser acessível

para ser bonita e macia ao toque

como um golfinho eu não falo a língua dos homens e não vejo maldade nos olhos a não ser que me treinem, que me ensinem, que me tragam peixes e

como um golfinho eu respiro por um furo só, fácil de ser tapado

puxar o ar é mais difícil quando não se entende as coisas

você não deveria ter encostado em mim.


(publicado originalmente em O SEGUNDO CU)





CALLING DOCTOR LOVE: 5 COISAS SOBRE SEXO ENTRE MULHERES QUE TODO MUNDO DEVIA SABER (por Helena Bertho)



“Amiga, opera a cura hetero em mim que eu quero sexo bom pro resto da minha vida”, disse uma amiga dia desses.

Poxa, bem que eu queria poder operar a cura heterossexual por aí. Mas além da tristeza de não ter esse poder, a fala me fez pensar: as pessoas têm umas ideias muito loucas sobre como seria o sexo entre mulheres, né?  

Eu estava num dilema com essa coluna: não é meu lugar de fala escrever sobre o ser lésbica, mas também não podia deixar a data passar em branco. Depois de muito pensar, achei que seria um ótimo momento de usar esse espaço focado em sexo para desmistificar algumas ideias que as pessoas têm sobre o sexo entre mulheres.

Assim a gente evita falas preconceituosas e também não se ilude achando que basta gostar de mulher para resolver todos os problemas sexuais da vida. 


1. É SEXO
Parece besteira começar assim. Mas tem gente que acha que se não há um pênis envolvido, não é sexo. Mas não é bem assim. Já faz muito tempo que se considera sexo um monte de coisa além do coito (o ato da penetração do pênis na vagina com fins reprodutivos). Sexo é a troca física entre duas pessoas com objetivo de sentir prazer e é um conceito muito amplo. Tem gente que acha que até beijo é sexo. Pode até render um debate. Mas quando falamos em duas mulheres (cisgêneras ou trangêneras) transando, é sexo sim. 


2. NÃO É SÓ SEXO ORAL
Já vi gente surpresa de escutar que lésbicas não ficam só chupando uma à outra. Veja só! O sexo entre mulheres envolve um monte de formas de estimular o corpo. Vai dizer que nunca ouviu falar de tesourinha? Também se usa muito a mão… E, inclusive, é mais comum que no sexo entre mulheres as envolvidas lembrem que existe um corpo todo ali, para muito além dos genitais, e que dá para sentir prazer de muitos (muitos mesmo) jeitos. 


3. PODE TER PENETRAÇÃO
Existe uma ideia comum de que o sexo entre mulheres não envolve penetração. Mas isso não é verdade. Algumas não gostam de ser penetradas, outras adoram. Muitos casais de mulheres usam dildos e vibradores para isso. O dedo também pode entrar na equação. E ainda existem mulheres trans que têm pênis e cujas parceiras gostam da penetração. A verdade, mais verdadeira, é que assim como no sexo entre homens ou no hétero, no sexo entre mulheres existe uma infinidade de possibilidades de práticas e jeitos de fazer. Quando as duas ali querem, vale tudo. Um detalhe: Pode rolar eventualmente transmissão de infecções sexualmente transmissíveis entre mulheres também. Mas não vou me estender aqui porque tem uma reportagem inteira sobre isso saindo esta semana com explicações mais detalhadas sobre os riscos e formas de prevenção. 


4. NÃO ACONTECE PARA EXCITAR HOMENS
Pode parecer óbvio, mas dá uma busca em canais de pornografia para ver o que muita gente acha que é o sexo entre mulheres: praticamente um show de exibicionismo para excitar os homens. E por isso é comum que casais de mulheres ouçam falas como “posso participar?”, quando estão se beijando. Acho que nossa sociedade está tão acostumada a pensar a sexualidade a partir de um ponto de vista masculino, que tem homem que honestamente não entende que não é sobre ele. Mas é bom saber que, no geral, quando duas mulheres transam, elas estão procurando excitar uma à outra e só. Detalhe importante: ao contrário do sexo entre mulheres, a pornografia lésbica tem um volume bem grande de material feito para excitar homens. E que simplesmente não têm lastro com a realidade. Unhas gigantes, por exemplo, são o terror do sexo sapatão. Além disso, tapas na ppk. Com certeza deve ter alguém que gosta, mas não é assim tão recorrente quanto nos vídeos. E nem vamos falar da língua dura que tenta fazer as vezes do pênis…


5. NÃO É PORQUE É MULHER, QUE FAZ GOSTOSO
Essa é pra amiga que quer ser convertida na esperança de só ter transas boas: você vai se frustrar. Até porque, o que é fazer gostoso, né? Cada uma tem um gosto, uma sensibilidade, um ritmo. Então pode acontecer de uma não curtir o jeito que a outra chupa, ou o ritmo com que se mexe. Como todo sexo, é encontro. E claro, também, envolve prática. A mulher que nunca transou com mulher vai precisar de algum tempo para se adaptar aos novos jeitos de fazer e desapegar o ritmo frenético da britadeira aprendido com os homens.

Helena Bertho é jornalista formada pela USP e com pós-graduação em roteiro pela FAAP. Já atuou em diversos veículos, como UOL, M de Mulher, Veja São Paulo e a Revista Sou Mais Eu. Especializada em cobertura de gênero, direitos humanos, diversidade e sexualidade, é editora chefe da Revista AzMina, onde este texto foi originalmente publicado, e também escreve a coluna quinzenal sobre sexo na revista, que pode ser acessada neste endereço web: https://azmina.com.br

O pintor pós-impressionista Antoine de Toulouse-Lautrec é o responsável pelas lindas imagens de sacanagem entre mulheres utilizadas para ilustrar este texto.




Monday, September 2, 2019

A HISTÓRIA DO EUA, SEGUNDO PAULO FRANCIS




O ESPÍRITO LIBERAL DE 1776

“Os EUA comemoram hoje o bicentenário da Declaração de Independência. A nação que o mundo teme, respeita, inveja, admira ou detesta evolui aos poucos, sendo ao menos argumentável que se consolidou, no sentido moderno do termo, depois da Guerra Civil de 1861-1865, em que a autonomia dos Estados, uma das premissas básicas da Revolução de 1776, foi substituída pelo poder central, pelo conceito de união indissolúvel.

Essa guerra nos deu muitos mitos, populares até nos EUA, O mais conhecido de todos, naturalmente, que o “Norte”, sob Abraham Lincoln, lutou para emancipar os escravos negros. Lincoln libertou os escravos em 1863, os do Sul, mantendo durante algum tempo a escravidão em territórios favoráveis à união.

Um dos documentos mais sutis e profundos da história norte-americana é o discurso de Jefferson Davis, presidente dos secessionistas, quando da “revolta”, pois põe a nu a hipocrisia antiescravagista de Lincoln e os interesses econômicos por trás da retórica patriótica e libertária.

A guerra ia incerta. Era constitucional que qualquer Estado se desligasse da união, quando bem entendesse. Estabelecido o recrutamento compulsório, em 1863, houve motins violentos. Um, em Nova York, provocou a morte de mil pessoas. Lincoln deu um molho liberal à luta.

Todo país vive, em parte, de mitos, homens até morrem por mitos, e a justiça da causa sulista e os motivos que levaram Lincoln a proclamar a emancipação não mudam a realidade de libertação dos escravos ou sequer a qualidade da retórica de Lincoln, que recebeu a aprovação do maior homem de letras que o país produziu, Edmund Wilson, cuja obra Patriotic Gore [1962] é indispensável à compreensão dos EUA.

É interessante que os EUA e a URSS sejam os únicos países do mundo criados por intelectuais, em vez de reis, príncipes, padres ou bons burgueses. A Carta de Direitos (os dez primeiros artigos da Constituição) permanece um modelo de libertarismo que sugere ideais sobre-humanos, assim como a visão de mundo leninista, em que “Estado e Revolução” são uma promessa utópica jamais sonhada pelos meros beletristas do gênero, de More a Wells. Entre teoria e prática, há, claro, abismos, mas talvez o impulso de poder e autossuficiência das duas nações se deva, até certo ponto, às origens eminentemente intelectuais. Cessam aí as semelhanças.”


EVOLUÇÃO OU REVOLUÇÃO

“A riqueza de 1776, em inspiração liberal para o resto do mundo, da Revolução Francesa (incomparavelmente mais profunda) à busca de soberania no resto das Américas, dispensa comentários. É preciso notar, porém, que as colônias, como eram conhecidos os doze Estados que fundaram os EUA (Massachusetts, New Hampshire, Rhode Island, Connecticut, Nova York, Pensilvânia, Nova Jersey, Maryland, Virgínia, Carolina do Norte, Carolina do Sul e Geórgia), pouco tinham em comum com o que, hoje, entendemos por “colônias”. Se fiéis à Coroa inglesa, se declararam logo independentes do Parlamento em Londres. Elegiam os próprios governadores-gerais e deputados. Dispunham de uma imprensa livre. Consideravam-se associadas e não dependentes da Inglaterra, o que já é sensível nos documentos existentes sobre Jamestown, fundada em 1607. A mais famosa, estabelecida entre 1630 e 1642, na Nova Inglaterra, trouxe ao Novo Mundo os chamados puritanos, que viam na terra uma nova Canaã, superior moralmente à “dissoluta” matriz.

Um dos grandes controversistas americanos, Gore Vidal, numa alusão à “caça às feiticeiras” – que permeia a história dos EUA -, nota, ironicamente, que, ao contrário da lenda, os puritanos não foram perseguidos na Inglaterra. Deixaram-na porque a Coroa não permitia que perseguissem o próximo.

E, tão importante, o cerne étnico da colonização jamais possuía a pureza anglo-saxônica, que virou também mito. Os EUA receberam, de início, uma população cosmopolita, holandeses, alemães, anglo-irlandeses (protestantes), franceses (huguenotes), escoceses, suíços, judeus, escandinavos e os esquecidos e subjugados negros. Essa mistura de povos e raças e as dificuldades tremendas que os colonizadores encontraram, tendo de resolvê-las por si próprios, criaram uma consciência especificamente americana.

Não é, portanto, correto pensar que em 1750, quando as divergências entre Londres e colônias começaram a explodir, homens de gênio como George Washington, Thomas Jefferson, George Mason, Alexander Hamilton e Benjamin Franklin desceram, de súbito, das árvores, armados da filosofia liberal de John Locke e da concepção de Estado de Montesquieu. Seis das maiores universidades do pais, Harvard, Yale, King’s College (Columbia), Princeton, Brown e Dartmouth, são pré-revolucionárias e educaram uma sofisticada classe dirigente “nativa”. No período, publicavam-se mil títulos ao ano, produção que, até hoje, faz inveja a muita nação subdesenvolvida.

Esquecido também é que, durante o século XVII até 1763, a França disputou o controle do continente norte-americano, deixando profundas marcas na cultura nacional, até que foi derrotada no Canadá. Nova Orleans, Detroit e Mobile (Alabama) foram colonizações francesas e, mais importante, pela fertilidade, o vale do Ohio. Os colonos sentiram a própria força numa série de combates ferozes, contra franceses aliados aos índios, e partilhavam o comando das tropas com generais ingleses. Beneficiaram-se também da introversão da Inglaterra, de 1640 ao fim do século, um período altamente revolucionário, a era de Cromwell.

Logo, o 1776 foi mais evolução do que revolução. Significativamente, quando a Inglaterra decidiu tratar os colonos como tais, pela primeira vez, taxando-os e tentando confinar-lhes e controlar-lhes o comércio, é que eles se rebelaram.”


CARTA DE DIREITOS

“A Constituição dos vitoriosos, ratificada pelo nono Estado (New Hampshire: nove era o número necessário para que valesse) em 1788, entrou em vigor em 1789. Continha sete artigos. Foi se expandindo ao correr do tempo, estando longe de ser, portanto, o “documento de uma sociedade agrária”, como a apelidou desdenhosamente Richard Nixon. Basta dizer que a Carta de Direitos só recebeu a ratificação de Massachusetts, Geórgia e Connecticut em 1939, às vésperas da Segunda Guerra.

Por trás do liberalismo abrangente havia duas concepções de Estado em conflito. A de Jefferson, que previa uma “livre associação de Estados”, em que cada homem (branco) fosse senhor de sua terra, cultivando-a em paz e liberdade. E a de Alexander Hamilton, que propunha um sistema federal centralizado, em suma, os EUA de hoje. Jefferson derrotou Hamilton nas polêmicas da época, da mesma forma que Rosa Luxemburgo bateu Eduard Bernstein no debate entre revolução e reformismo, na Alemanha de 1900. Em outras palavras, o derrotado em teoria estabeleceu a prática. Jefferson, ao assumir a Presidência em 1801, já era hamiltoniano e, no mesmo ano, a incipiente Marinha norte-americana procurava negócios nas costas da África, sob o pretexto de perseguir piratas. Começara a expansão nacional e imperial.”


O SÉCULO DECISIVO

“Em cem anos, até 1900, os EUA passaram de uma próspera colônia à maior potência industrial do mundo. A partir da compra da Louisiana (da França), em 1805, não importa qual a fraseologia empregada ou o invólucro autoexculpatório, seja “Doutrina Monroe” (1823) ou “Destino Manifesto” (de criar uma sociedade superior às demais; a concepção original e teocrática, de 1630, traduziu-se sem dificuldade ao mundo material…), o país se tornou imperial. Em 1848, anexou mil milhas quadradas do México (Utah, Nevada, Califórnia, Arizona, Colorado Ocidental e Novo México), pagando uma soma ridícula, 15 milhões de dólares. Em 1898, na guerra contra a Espanha, se apossou de Cuba, Porto Rico e estendeu-se às Filipinas, iniciando o avanço mundial, cujo primeiro fruto foi o controle da América Central e uma influência decisiva em toda a América Latina (já reservada aos EUA na linguagem ambígua da Doutrina Monroe).

Internamente, a consolidação nacional também se processou a ferro e fogo, em guerras de genocídio contra os índios, no uso cruel do trabalho escravo negro e na exploração de mão de obra barata dos imigrantes europeus. É significativo, em relação ao mito da origem étnica anglo-saxônica, que, de uma população de 225 milhões, em 1976, apenas 30 milhões se declarem descendentes dos ingleses.”


O AVANÇO DA DEMOCRACIA

“As mulheres só obtiveram o voto em 1920, e os negros foram excluídos oficialmente do processo político até a guerra civil e “informalmente” até a década de 1960. E vale notar que o conceito jeffersoniano de democracia, apesar das beatitudes filosóficas libertárias e de muito palavrório sobre os direitos do homem “comum”, era, em verdade, aristocrático, dando o voto em relação à propriedade do eleitor, excluindo, portanto, a maioria do povo. A reforma começou em 1830, sob o presidente Andrew Jackson, grande massacrador de índios, porém, em revolta contra a supremacia das grandes famílias, das quais a mais famosa é a dinastia de John Quincy Adams (ora glamourizada numa asnática série de televisão). Jackson abriu as porteiras à ralé, “terminando o nosso mundo”, observou o poeta e elitista americano T. S. Eliot.

A famosa frase de Jefferson na declaração de independência sobre os direitos do ser humano, “vida, liberdade e procura da liberdade”, era, no original, “vida, liberdade e propriedade”. Jefferson mudou-a aconselhado por George Mason, o inspirador da Carta de Direitos; “Felicidade” é um conceito vago numa nação que sente os próprios músculos e os flexiona em todas as direções possíveis, derrubando obstáculos. Os mais fracos pereceram, como os índios (quatrocentos tratados entre brancos e índios. Todos, sem exceção, rompidos unilateralmente pelos brancos), ou foram submetidos a humilhações indizíveis, como os negros.

O século XIX, porém, foi a era de ouro do capitalismo liberal e nenhuma potência importante se desenvolveu de maneira muito diferente. Vale dizer que um dos admiradores das “cirurgias radicais” da elite branca dominante contra índios, mexicanos e negros era Karl Marx, sempre favorável a que o capitalismo se expandisse aos limites possíveis, antes do advento do socialismo.

E seria ignorância supor que não houve resistência interna, intelectual, humanista, contra as violências peculiares à época. Escritores como Mark Twain, Waldo Emerson e Henry Thoreau castigaram verbalmente o imperialismo e a crueldade do sistema na acumulação de riquezas. Harriet Beecher Stowe, em A cabana do Pai Tomás [1852], levantou a consciência abolicionista da nação e do mundo.

O ideal democrático, nos tumultos do século XIX, sempre coexistiu com o expansionismo interno e externo.

Eugene Debs, líder socialista, obteve boa votação quando candidato à Presidência, no início do século XX. Em 1932, o socialista Norman Thomas foi candidato, com apoio expressivo da intelectualidade.

Ideias radicais que transcendessem o liberalismo de 1776 nunca, porém, vingaram, e até hoje os EUA são o único país industrializado sem um movimento esquerdista consolidado em partidos e sindicatos operários.”


POTÊNCIA IMPERIAL

“Se os EUA já eram a maior nação industrial do mundo em 1960, disputando mercados imperiais com as competidoras europeias na China, Japão e América Latina, o centro político permanecia na Europa, particularmente o Império Britânico, dominando 500 milhões de pessoas e uma extensão de terra que deu origem à frase de que “o sol nunca se põe” sobre a bandeira inglesa. O capitalismo liberal europeu, porém, se despedaçou na guerra de 1914-1918, permitindo que os EUA “apanhassem os pedaços”, ao entrar no conflito em 1917, quando os adversários estavam esgotados de recursos e moralmente arrasados.

O “problema soviético” emergia somente no pós-guerra de 1945. O presidente Woodrow Wilson, que levou os EUA à chamada Grande Guerra, é a figura dominante do período. Propôs o internacionalismo, que, até hoje, 1976, é a política externa do país. Wilson via um mundo à maneira norte-americana, povoado de democracias representativas, liberto de esferas de influência (a causa das guerras, segundo o presidente), aberto ao livre comércio, que aproximaria os homens pelos interesses em comum.

A imagem é bonita e não há dúvida de que foi, em parte, baseada em convicções sinceras. A realidade, porém, era e é diferente. Já em 1919 a democracia representativa estava longe de ser a forma de governo preferida pela maioria das elites dirigentes do mundo. E o “livre comércio”, dada a superioridade industrial dos EUA, significaria, na prática, a hegemonia de Washington, que, de resto, emergiu do conflito credora de praticamente todas as nações envolvidas. E obrigaria os velhos impérios, Inglaterra e França, a desmontar o sistema autárquico e protecionista pelo qual mantinham as respectivas colônias.

A visão de Wilson também não correspondia à própria realidade do continente americano. Os EUA mantinham as mais altas tarifas protecionistas do mundo, na época, e queriam preservar a parte da Doutrina Monroe que lhes interessava, a não interferência europeia nas Américas, quando já haviam infringido outra componente da doutrina, a que haviam descartado na guerra, o não envolvimento dos EUA na Europa.

Os líderes econômicos norte-americanos, a comunidade de negócios, fizeram coro com Clemenceau e Lloyd George, rejeitando o curioso e seletivo idealismo wilsoniano. Daí o mito do “isolacionismo”, entendido como abstenção dos EUA dos assuntos mundiais, quando, em verdade, quer dizer apenas desligamento político, pois as multinacionais se expandiam em todos os continentes, querendo evitar, isto sim, acordos diplomáticos que lhes restringissem os movimentos.”


ISOLACIONISMO

“A Depressão de 1929 foi, em grande parte, causada pelo que Wilson abominava, esferas de influência que se traduziam em sistemas econômicos fechados, protecionismo, a luta anárquica por matérias-primas, a falta de coordenação do comércio mundial, a inexistência de uma comunidade mundial que gerisse harmoniosamente os recursos da Terra em favor das potências industrializadas e a praga corrosiva do nacionalismo.

Franklin Roosevelt, presidente de 1933 a 1945, encaminhou os EUA à hegemonia mundial e à reforma interna. O New Deal, o programa rooseveltiano, adotou ipsis litteris a visão internacionalista de Wilson, ao mesmo tempo que lançou os alicerces do Welfare State no país, criando a previdência social, o seguro contra o desemprego, e estendeu as franquias democráticas do povo. Foi um fracasso no sentido de que não resolveu o problema estrutural da Depressão (em 1940, os EUA enfrentavam 15% de desemprego), minorando apenas, pelo reformismo, a miséria social.

Em 1937, num agravamento da crise econômica, Roosevelt pronunciou o famoso discurso “Quarentena para os agressores”, a plataforma da política intervencionista que os EUA seguiriam a partir de 1941. Os “agressores”, naturalmente, eram Hitler, Mussolini e Hiroíto, nacionalistas ressentidos, derrotados direta ou indiretamente em 1918, que exigiam agora um lugar ao sol, usando violência se necessário, num mundo devastado pela Depressão e, mais grave, sob ameaça de uma revolução das massas no modelo do abominado bolchevismo.

O discurso foi mal recebido nos EUA, pois a concepção de expansionismo econômico sem amarras políticas, o “isolacionismo”, continuava dominante. Os acontecimentos, porém, trabalhavam a favor de Roosevelt.

A guerra europeia de 1939, em 1941, se tornou mundial, atraindo os EUA, a URSS e o Japão. A aliança entre EUA, URSS e Inglaterra foi um casamento de conveniência que se desfez rapidamente na realidade da paz. Stálin queria segurança no Leste Europeu, em suma, uma esfera de influência soviética. Churchill pretendia, cego à ruína econômica inglesa, manter o império e o sistema de “bloco da libra”, que obrigava colônias e domínios a negociar exclusivamente em termos favoráveis à Inglaterra. Uma quimera que a necessidade inglesa de obter auxílio dos EUA, quando sozinha em face da Alemanha, destruiu rapidamente, tornando a Grã-Bretanha sócia menor de Washington, condição em que se encontra até hoje.

A URSS era diferente. Venceu a guerra na Europa, arcando com 70% da luta contra Hitler, o que fica evidente nos documentos da Conferência de Ialta (fevereiro de 1945). Estabeleceu seu sistema no Leste Europeu. O resto do mundo caiu sob controle americano, ao menos até que ocorressem as revoluções chinesa, cubana e vietnamita.

O enriquecimento dos EUA na Segunda Guerra pode ser aferido pelos seguintes dados: em 1941 o PIB do país era 96 bilhões de dólares: em 1942,122 bilhões: em 1943,149 bilhões; em 1944,160 bilhões. Hoje, é 1 trilhão e 300 bilhões, dobrando praticamente a cada ano do pós- guerra.

Roosevelt montou, em Dumbarton Oaks e Bretton Woods, os sistemas político (Nações Unidas) e econômico (Banco Mundial etc.) em que se alicerçaria a hegemonia americana. Se atas de conferência valem alguma coisa, sem falar de extensos estudos históricos disponíveis, Roosevelt pretendia respeitar algumas aspirações soviéticas a uma esfera de influência no Leste Europeu. Não viveu o bastante para que saibamos, com certeza.

O sucessor, Harry Truman (1945-1953), inseguro, temeroso de que o desmantelamento da economia de guerra trouxesse de volta a Depressão e armado da “invencível” bomba nuclear, então monopólio dos Estados Unidos, interpretou diferentemente o acordo (ambíguo, é verdade) de Ialta e resolveu enfrentar a “ameaça soviética”. Nenhum estrategista norte-americano previra que a Europa Ocidental, devastada pelo conflito, se sentisse atraída a modelos socialistas de recuperação, o que aconteceu entre 1943 e 1947, quando então a influência dos EUA e programas de rearmamento (Otan) e recuperação econômica (Plano Marshall), sem falar da Doutrina Truman, de 1947, que prometia intervir em qualquer canto do globo sob risco de subversão, contiveram o surto revolucionário. O preço foi a divisão permanente da Europa, oficializada em Helsinque, 1975.”


AUTOCRÍTICA E RECUO

“Se a hegemonia dos EUA não foi total, pós-1945, não há dúvida de que se imprimiu na maior parte do mundo, toda aquela, de resto, que não caiu sob controle comunista. O país prosperou de maneira estupenda, dobrando o PIB de 1950 a 1960, de 1960 a 1970, enquanto missionariamente bloqueava surtos nacionalistas que suspeitava fossem de origem ou em proveito da “outra igreja”, com base em Moscou.

Uma guerra entre nações industrializadas se tornou difícil depois que a URSS atingiu paridade nuclear com os EUA. A luta ideológica se transferiu para o Terceiro Mundo, onde está até hoje. Não há vitoriosos. Ambos os blocos podem apontar sucessos e fracassos.

Nos EUA, porém, a partir da guerra no Vietnã, um intenso movimento de autocrítica está em curso. Os horrores do conflito penetraram em todos os lares americanos pela televisão em cores. A tenacidade dos vietnamitas, um dos povos mais pobres da Terra, enfrentando a maior máquina militar e tecnológica da história, chocou profundamente o povo americano. O liberalismo da sociedade permitiu que a crítica virulenta às premissas básicas da política externa de Washington tivesse ampla divulgação, o país rachou entre intervencionistas e não intervencionistas, tema que sublinha a campanha eleitoral de 1976.

Se isso não bastasse, o escândalo de Watergate, em 1972, levando à renúncia, pela primeira vez na história, um presidente, revelou insuspeitadas vulnerabilidades no sistema, em sua ação interna.

Essas crises certamente diminuíram muito o sentimento anticomunista, que beirou o patológico, entre 1949 e 1956. Isso não significa que haja simpatia pelo comunismo. Ao contrário. O PC tem 100 mil membros nos EUA. O regime soviético é visto como uma monstruosidade totalitária.

Há, porém, maior tolerância pela diversidade do mundo e uma repulsa forte à tese de que os EUA devem determinar o rumo a ser seguido pelos outros países. O espírito liberal de 1776 se reafirmou em face dos desastres na Indochina e de Watergate.

A própria elite dirigente parece ter reconhecido os limites do seu poder. Esse é um dos significados da política de détente, “negociar em vez de confrontar”, só não aceita, e de boca, por um dos candidatos à Presidência de 1976, Ronald Reagan.

O quadro mundial mudou completamente. Hoje, os EUA e as demais nações capitalistas industrializadas enfrentam uma rebelião, anárquica e contraditória, porém inequívoca, do chamado Terceiro Mundo, fornecedor passivo no século XX de matérias-primas e mercados, em troca de muito pouco. O símbolo dessa rebelião, encabeçado por nações na maioria conservadoras, é a Opep. Os EUA dizem-se dispostos a negociar. É provável que não exista alternativa.

O país, porém, está mais próspero do que nunca, prevendo-se em 1976 um crescimento real de 7% sobre um PIB de 1 trilhão e 300 bilhões de dólares, depois de vencida a recessão de 1974- 1975. Os americanos produzem mais e consomem mais que dois terços da humanidade. E gozam do sistema político mais livre do mundo. Têm muito por que se autocongratularem.

Existe consciência de problemas sociais profundos. Nenhum é insolúvel. É possível integrar o negro, a mais alienada componente da sociedade, às benesses que já se tornaram rotineiras para a classe média branca. Basta haver liderança. Virão com certeza um seguro médico nacional, uma garantia de emprego a cada cidadão apto e outros aperfeiçoamentos do Welfare State inaugurado por Franklin Roosevelt.

A maioria do povo permanece fiel ao sistema, se bem que um número crescente de pessoas lhe nota as deficiências internas e privilégios incompatíveis com uma ordem mundial em que a justiça prevaleça. O país, porém, é jovem e nunca revelou incapacidade de aprender. E o povo, o que é mais importante, nunca permitiu que lhe roubassem o direito de pensar e agir livremente.”



Paulo Francis (Rio de Janeiro, 02-10-1930)
foi um intelectual completo e um grande polemista.
Começou sua carreira como crítico de teatro
e pouco a pouco foi-se transformando
no articulista mais eclético e mais influente
de toda a história da Imprensa Brasileira.
Trabalhou na Tribuna de Imprensa, no Correio da Manhã,
no Jornal do Brasil, na Folha, no Globo, no Estadão
e também nas revistas Senhor, Status e Bravo!
Francis morreu na cidade de Nova York
em 04-02-1997, há 22 anos