Monday, February 19, 2018

HISTOIRE D'O (parte 3)




CAPÍTULO 2
SIR STEPHEN

O apartamento em que O morava ficava sobre o Sena, na île Saint-Louis, na cobertura de uma velha casa que dava para o sul. Eram cômodos de mansarda, grandes e baixos e os dois da fachada possuíam terraços construídos no declive do telhado. Um deles era o quarto de O, e o outro, onde prateleiras de livros enquadravam a lareira do chão até o teto, servia de sala, de escritório, e até de quarto se fosse necessário; havia um grande sofá na frente das duas janelas, e diante da lareira, uma mesa grande e antiga. Aí também se podia jantar, quando a pequenina sala de jantar revestida de sarja verde-escura, que dava para o pátio interno, tornava-se pequena demais para os convivas. Um outro quarto, que também dava para o pátio, era usado por René, que aí guardava suas roupas e se vestia. O repartira com ele seu banheiro amarelo; a cozinha, também amarela, era minúscula. Todos os dias vinha uma mulher fazer a limpeza. Os cômodos, que davam para o pátio, eram ladrilhados de vermelho, com esses antigos azulejos de seis lados que cobrem, a partir do segundo andar, as escadas e os corredores dos velhos hotéis de Paris. Ao revê-los, O sentiu um choque no coração: eram os mesmos azulejos que os dos corredores de Roissy. Em seu pequeno quarto, as cortinas de chintz cor-de-rosa e preto estavam fechadas, o fogo brilhava atrás da tela metálica da lareira e a cama encontrava-se arrumada e com as cobertas esticadas.

"Comprei uma camisola de náilon para você", disse René, "pois não tinha uma assim". Com efeito, uma camisola de náilon branca, plissada, justa e fina como as roupas das estatuetas egípcias, e quase transparente, estava estendida na beira da cama, no lado em que O costumava deitar-se. Amarrava-se à cintura com um cinto estreito sobre uma faixa de pespontos elásticos, e o jérsei de náilon era tão leve que o bico dos seios o coloria de rosa. Com exceção das cortinas, do revestimento onde se apoiava a cabeceira da cama e de duas pequenas poltronas baixas cobertas do mesmo chintz, tudo o mais era branco neste quarto: as paredes, a colcha que cobria a cama de colunas em acaju e as peles de urso no chão. Foi sentada diante do fogo, com sua camisola branca, que O escutou seu amante. Disse-lhe primeiro que de agora em diante não deveria mais considerar-se livre, logo acrescentando que era livre entretanto para não mais amá-lo e abandoná-lo imediatamente. Mas, se o amava, então não era livre para nada. O escutava-o em silêncio, considerando-se feliz por ele querer provar a si mesmo, sem importar-se como, que ela lhe pertencia, e achando também que havia ingenuidade de sua parte, em não perceber que essa dependência ia além de qualquer prova. Mas talvez o percebesse e só quisesse prová-lo por sentir prazer nisto... Enquanto ele falava, O olhava o fogo e não para ele, não ousando encontrar seu olhar. René andava de um lado para o outro. De repente disse-lhe para abrir os braços e afastar os joelhos enquanto o escutava, pois estava sentada com os joelhos unidos e os braços cruzados ao redor. Ela, então, levantou a camisola e de joelhos, mas sentada sobre os calcanhares como fazem as carmelitas e as japonesas, esperou. Com os joelhos afastados, sentia, entretanto, um leve e agudo formigamento entre as coxas entreabertas, devido ao contato com a pele branca, de urso. Ele insistiu: não abrira suficientemente as pernas. A palavra "abre" e a expressão "abre as pernas" assumiam na boca de seu amante tanta perturbação e tanto poder, que O nunca as ouviu sem uma espécie de prosternação interior, de submissão sagrada, como se um deus, e não ele, tivesse falado. Ficou então imóvel, com as mãos repousando com as palmas para cima, dos lados dos joelhos, entre os quais o jérsei de sua camisola espalhada ao redor formava novas pregas. O que seu amante desejava dela era simples: que permanecesse constante e imediatamente acessível. Não lhe bastava apenas saber: era necessário que permanecesse assim, sem o menor obstáculo, e que primeiro seu modo de comportar-se e em seguida suas roupas fossem, aos seus olhos avisados, por assim dizer, o símbolo disso. Isso significava duas coisas, prosseguiu: a primeira, que ela já sabia e sobre a qual tinha sido recomendada na noite em que chegara ao castelo: os joelhos que nunca devia cruzar, os lábios que deviam permanecer entreabertos. Sem dúvida ela achava que isso não tinha importância (e O realmente pensava assim), mas perceberia, ao contrário, que para se conformar com esta disciplina necessitaria de um constante esforço de atenção; que no segredo compartilhado por ambos e talvez por alguns outros, e no meio de ocupações comuns, entre todos aqueles que não o compartilhavam, lembrar-lhe-ia a realidade de sua condição. Quanto às suas roupas, cabia-lhe dar um jeito para escolhê-las ou para inventá-las, de modo que não fosse mais necessário submetê-la a despir-se parcialmente, como tinha acontecido no carro que a conduzia a Roissy. Amanhã, deveria fazer uma triagem em seus vestidos, nos armários, em suas roupas de baixo e nas gavetas, para substituir absolutamente tudo o que encontrasse: ligas e calcinhas, assim como sutiãs semelhantes ao que teve que cortar as alças para tirar, combinações que lhe cobriam os seios, blusas e vestidos que não se abriam na frente e saias demasiado estreitas para serem levantadas com um único gesto. Que mandasse fazer outros sutiãs, outras blusas, outros vestidos. Deveria ir à costureira com os seios nus sob a blusa ou sob a malha? Sim, iria com os seios nus. Se alguém percebesse podia explicar como quisesse, ou não explicar, à vontade. Isso só concernia à ela própria. Agora, quanto a outras coisas que queria ensinar-lhe, desejava esperar alguns dias, e que, para ouvi-lo, ela estivesse vestida como deveria. Encontraria todo o dinheiro que lhe fosse necessário na gaveta de sua secretária. Quando acabou de falar, sem esboçar o menor gesto, O murmurou "eu o amo". Foi ele quem pôs mais lenha no fogo e quem acendeu a lâmpada da cabeceira, de opalina rosa. Disse, então, a O para deitar-se e esperá-lo, pois viria dormir com ela. Quando voltou, O estendeu a mão para apagar a luz: foi a mão esquerda, e a última coisa que viu antes que a escuridão apagasse tudo, foi o brilho sombrio do seu anel de ferro. Estava deitada meio de lado; no mesmo instante, seu amante dizia seu nome em voz baixa e a atraía para ele, penetrando, com toda a sua mão, no fundo de seu ventre.

No dia seguinte, quando O tinha acabado de almoçar, sozinha e vestida com um roupão na sala de jantar verde. René tinha saído cedo e só deveria voltar à noite para levá-la para jantar. O telefone tocou. O aparelho ficava no quarto, sob a lâmpada da cabeceira da cama. O sentou-se no chão para atender. Era René, que queria saber se a mulher da limpeza já tinha partido. Sim, acabara de sair, depois de servir o almoço, e só voltaria no dia seguinte de manhã. "Já começou a triagem das suas roupas?", ele perguntou. "Estava para começar", respondeu O, "mas levantei muito tarde, tomei um banho, e só fiquei pronta ao meio-dia." "Está vestida?" "Não, estou de camisola e de roupão." "Largue o telefone, tire seu roupão e sua camisola." O obedeceu, tão emocionada que o aparelho caiu da cama, onde o tinha colocado, sobre o tapete branco, o que a fez pensar que a comunicação tinha se cortado. Não, não estava cortada. "Está nua?", continuou René. "Sim", disse ela, "mas de onde você está me telefonando?". René não respondeu à sua pergunta e continuou. "Conservou o anel?". Tinha-o conservado. Disse-lhe então para ficar como estava até que ele voltasse e, assim despida, preparar a mala com as roupas das quais deveria se livrar. Em seguida desligou. Já era mais de uma hora e o tempo estava bom. Um raio de sol iluminava, sobre o tapete, a camisola branca e o roupão de veludo côtelé verde-pálido como as cascas de amêndoas frescas, que, ao retirar, O tinha deixado cair. Recolheu as roupas para ir guardá-las num armário do banheiro. No caminho, um dos espelhos fixado sobre uma porta, que formava com um outro sobre a parede e com outra porta igualmente coberta com um espelho um grande espelho de três faces, bruscamente refletiu sua imagem: estava usando apenas seus chinelos de couro do mesmo verde que seu roupão -- só um pouco mais escuros do que os chinelos que usava em Roissy -- e seu anel. Não tinha mais o colar e os braceletes de couro, estava sozinha, só tendo a si mesma como espectadora. Nunca, entretanto, sentira-se mais totalmente entregue a uma vontade que não era a sua, mais totalmente escrava e mais feliz por sê-lo. Quando se abaixava para abrir uma gaveta, viu que seus seios balançavam suavemente. Demorou cerca de duas horas para colocar sobre a cama as roupas que deveria arrumar na mala. Dispôs as calcinhas numa pequena pilha ao lado de uma das colunas da cama. O mesmo quanto aos sutiãs; não havia nenhum que servisse: todos se cruzavam nas costas e se fechavam do lado. Percebeu, no entanto, como poderia fazer executar o mesmo modelo, colocando o fecho na frente, entre os seios. Com as cinta-ligas, também não teve dificuldades, mas hesitou em dispensar a liga bordada de cetim cor-de-rosa que se amarrava nas costas e que lembrava tanto o espartilho que usara em Roissy. Deixou-a de lado sobre a cômoda. René decidiria. Também decidiria sobre as malhas que, todas, entravam pela cabeça e eram fechadas no pescoço, portanto, sem nenhuma abertura. Mas podiam ser levantadas desde a cintura, e desta forma libertar os seios. Todas as combinações, entretanto, amontoaram-se sobre a cama. Na gaveta da cômoda, ficou apenas uma anágua, de seda preta bordada com um folho plissado e pequenas valencianas, que servia de forro para uma saia de lã preta plissada, leve demais para não ficar transparente. Iria precisar de outras anáguas, claras e curtas. Percebeu também que precisaria renunciar a usar vestidos retos, ou então escolher modelos de vestidos abotoados de alto a baixo e, nesse caso, fazer um forro que se abrisse junto com o próprio vestido. Quanto às saias e aos vestidos, era fácil, mas quanto à roupa de baixo, que diria à costureira? Explicaria que queria um forro removível porque era friorenta. Era verdade que era friorenta, e repentinamente perguntou-se como iria suportar, tão mal protegida, o frio de inverno quando estivesse fora. Finalmente, tendo terminado e salvado de seu guarda-roupa apenas os vestidos que se abotoavam na frente, sua saia preta plissada, seus casacos, naturalmente, e o tailler com o qual tinha voltado de Roissy, foi preparar um chá. Na cozinha, aumentou o termostato do aquecimento. A mulher da limpeza não tinha enchido a cesta de lenhas para o fogo da sala e O sabia que seu amante gostaria de encontrá-la, à noite, na sala junto ao fogo. Encheu a cesta na caixa do corredor, trouxe-a para perto da lareira da sala, e acendeu o fogo. Assim, encolhida numa grande poltrona, com a bandeja de chá ao seu lado, esperou que ele entrasse, mas desta vez, como lhe tinha sido ordenado, esperou-o nua.

A primeira dificuldade que O encontrou foi no seu trabalho, mas dizer dificuldade é um certo exagero. Seria mais justo dizer que causou alguma surpresa. O trabalhava no setor de modas de uma agência fotográfica, o que significava que fotografava num estúdio onde deviam posar durante horas as moças mais estranhas e mais bonitas, escolhidas pelos costureiros para apresentarem seus modelos. Surpreenderam-se por O ter prolongado tanto suas férias, tendo se ausentado justamente no outono, época em que a atividade era maior, quando a moda nova estava para ser lançada. Mas isso ainda não era nada. Surpreenderam-se sobretudo por estar tão mudada. Podia-se senti-lo à primeira vista embora não se soubesse dizer exatamente em que, mas quanto mais se observava, mais evidente se tornava essa mudança. Mantinha-se mais ereta, seu olhar era mais claro, mas o que impressionava sobretudo era a perfeição de sua imobilidade e o comedimento dos seus gestos. Sempre se vestira sobriamente, como costumam fazer as moças que trabalham quando seu trabalho se assemelha ao trabalho dos homens; mas, por mais prudente que fosse, justamente o fato de que as outras moças, que constituíam o próprio objeto do seu trabalho, tivessem, por ocupação e por vocação, as roupas e os ornamentos, permitiu que observassem rapidamente o que teria passado despercebido a olhos menos avisados. As malhas usadas sobre a pele, e que delineavam os seios tão suavemente René finalmente tinha permitido as blusas de malha -- as saias plissadas que rodopiavam com tanta facilidade, tomavam um pouco o jeito de um discreto uniforme, pela frequência com que O as usava. "Você é muito jovem", disse-lhe um dia uma manequim loura de olhos verdes, que tinha as maçãs do rosto altas das eslavas e a pele trigueira. "Mas não devia usar essas ligas", continuou, "elas vão estragar suas pernas". Pois O, sem prestar atenção, tinha se sentado à sua frente um pouco depressa e de lado sobre o braço de uma grande poltrona de couro, e sua saia tinha se levantado. A moça percebera a coxa nua brilhando sobre a meia enrolada e que terminava logo acima do joelho. O vira-a sorrir de um modo tão curioso que ficou pensando o que teria imaginado nesse momento ou, quem sabe, compreendido. Puxou as meias, uma de cada vez, para esticá-las mais, o que era mais difícil do que quando subiam até a metade das coxas esticadas pela liga e, para justificar-se, respondeu a Jacqueline: "É prático." "Prático por quê? ", perguntou Jacqueline. "Não gosto das cintas-ligas", respondeu O. mas Jacqueline não a escutava e observava o anel de ferro.

Em poucos dias O tirou uma cinquenta fotos de Jacqueline. Não se pareciam com nenhuma das que tinha feito antes. Talvez nunca tivesse tido uma modelo como ela. Em todo caso, nunca soubera tirar de um rosto ou de um corpo um significado tão comovente. No entanto, tratava-se apenas de tornar mais belas as sedas, as peles e as rendas, pela súbita beleza de fada surpreendida ao espelho que Jacqueline expressava, tanto sob a blusa mais simples, como sob o mais suntuoso vison. Tinha os cabelos curtos, espessos e louros, apenas ondeados, e à menor palavra inclinava um pouco a cabeça para o ombro esquerdo encostando o rosto na gola levantada da pele, se nesse momento estivesse usando alguma pele. O fotografou-a assim uma vez, sorridente e terna, com os cabelos ligeiramente levantados como por um pouco de vento, e com o rosto firme e suave apoiado sobre o vison azulado, cinza e doce como a cinza fresca de um fogo de lenha. Entreabria os lábios e semicerrava os olhos. Na água brilhante e gelada da foto, dir-se-ia uma afogada feliz, e pálida, tão pálida! O tinha feito tirar a prova no mais leve tom de cinza. Tirara outra foto de Jacqueline que a perturbava ainda mais: contra a luz, com os ombros nus, a cabeça pequena e delicada, assim como o rosto, totalmente envolvido por um véu preto de malhas abertas, encimado por um penacho duplo absurdo, cujas pontas impalpáveis coroavam-na como uma fumaça. O vestido imenso, de uma seda vermelha, grossa e adamascada, como um vestido de noiva da Idade Média, cobria-a até os pés e abria-se nos quadris, apertando a cintura com uma armação modelando o busto. Era o que os costureiros costumam chamar de vestido de gala e que nunca ninguém usa. As sandálias, de saltos muito altos, também eram de seda vermelha. E durante todo o tempo em que Jacqueline esteve diante de O com este vestido, estas sandálias e este véu, que parecia a premonição de uma máscara, O completava e modificava consigo mesma o modelo: tão pouca coisa -- a cintura mais apertada, os seios mais expostos -- e era o mesmo vestido que Jeanne usava em Roissy, a mesma seda grossa, lisa, quebradiça, aquela seda que se levanta com as mãos à uma ordem... E agora Jacqueline levantava-a com as mãos para descer da plataforma onde estava posando há quinze minutos. Era o mesmo som leve, o mesmo estalido de folhas secas. Ninguém usa esses vestidos de gala? Ah! Sim! Jacqueline usava também, ajustado ao pescoço, um colar de ouro, assim como braceletes de ouro nos pulsos. O surpreendeu-se pensando que ficaria mais bela com o colar e os braceletes de couro. E desta vez, pela primeira vez, acompanhou Jacqueline até o grande camarim contíguo ao estúdio, onde as modelos se vestiam e se maquilavam e onde deixavam suas roupas e pinturas. Ficou de pé no batente da porta, com os olhos fixos no espelho da penteadeira diante da qual Jacqueline tinha se sentado sem tirar o vestido. O espelho era tão grande -- cobria todo o fundo da parede, e a penteadeira era uma simples mesinha de vidro negro -- que podia ver, ao mesmo tempo, Jacqueline, sua própria imagem e a imagem da moça encarregada de ajudar a vestir e a despir as manequins, que já retirava o penacho e o véu de tule. A própria Jacqueline abriu o colar, com os braços nus levantados como dois arcos; havia um pouco de suor brilhando nas axilas que estavam depiladas (por quê? Pensou O, que pena, era tão loura...) e O sentiu seu odor ocre e fino, um pouco vegetal, perguntando-se que perfume usaria Jacqueline - e que perfume lhe seria dado em Roissy. Em seguida, Jacqueline tirou os braceletes, colocando-os sobre a mesinha de vidro onde por um instante tiniram como correntes. Seus cabelos eram tão claros que sua pele chegava a ser mais escura do que os cabelos, lembrando a areia fina quando a maré acaba de se retirar. Na foto, a seda vermelha seria negra. Justo neste momento, Jacqueline levantou os cílios espessos que maquilava a contragosto, e O encontrou no espelho seu olhar tão direto, tão imóvel, que, sem poder desviar o seu, sentiu que enrubescia levemente. Foi tudo. "Com licença", disse Jacqueline, "tenho que tirar a roupa". "Desculpe", murmurou O; e fechou a porta. No dia seguinte levou para casa as provas das fotos tiradas na véspera, sem saber se desejava ou não mostrá-las a seu amante, com quem ia sair para jantar. Olhava-as enquanto se maquilava, à penteadeira de seu quarto, interrompendo-se para acompanhar com o dedo, sobre a foto, a linha de uma sobrancelha. Mas ao escutar o barulho da chave na fechadura da porta da entrada, guardou-as na gaveta.

O já se encontrava equipada a duas semanas, mas ainda não se acostumara com as novas roupas, quando uma noite, ao voltar do estúdio, encontrou um bilhete de seu amante, pedindo-lhe para estar pronta as oito horas, para ir jantar com ele e um de seus amigos. Mandaria um carro e o motorista subiria para chamá-la. O post-scriptum determinava que usasse um casaco de peles, que se vestisse inteiramente de negro (o inteiramente estava sublinhado) e que tivesse o cuidado de se maquilar e de perfumar-se como em Roissy. Eram seis horas; inteiramente de negro para jantar -- no frio de meados de dezembro significava usar meias de náilon pretas e sua saia plissada em leque, com uma malha grossa com lantejoulas, ou seu blusão de seda. Escolheu o blusão de seda, acolchoado com grandes pespontos, ajustado e abotoado do pescoço à cintura, como os estritos gibões usados pelos homens do século dezesseis; e se o busto se delineava tão bem, era porque havia um sutiã fixado no interior. Era forrado com o mesmo tecido, e suas abas recortadas terminavam nos quadris. Só o clareavam as grandes fivelas douradas, aparentes, como as que se vê nos sapatos que as crianças usam na neve, que se abrem e se fecham com barulho, sobre grandes argolas achatadas. Nada mais pareceu mais estranho a O, depois de ter estendido suas roupas sobre a cama, e colocado ao pé da cama seus sapatos de gamo negro, com salto alto em agulha, do que ver-se livre e sozinha no seu banheiro, cuidadosamente ocupada depois do banho, em maquilar-se e perfumar-se como em Roissy. As pinturas que possuía não eram as mesmas que lá se usava. Encontrou, na gaveta de sua penteadeira, um ruge cremoso para o rosto - nunca o usava - com o qual sublinhou a auréola dos seios. Era um ruge que mal se via no momento em que era aplicado, mas que depois tornava-se mais escuro. Mas logo achou que tinha colocado demais, tirou um pouco com álcool era difícil de tirar -- e recomeçou: uma tonalidade rosa-escura adornou a ponta de seus seios. Tentou inutilmente maquilar os lábios escondidos sob os pelos do ventre; o ruge aí não marcava. Encontrou, finalmente na mesma gaveta, um desses batons à prova de beijos, que não costumava usar porque era muito seco e marcava a boca por tempo demasiado. Este serviu. Arrumou por fim os cabelos, o rosto, e perfumou-se. René tinha lhe dado, num vaporizador que projetava em névoa espessa, um perfume cujo nome ignorava, mas que tinha cheiro de madeira seca e de plantas dos pântanos, acres e selvagens. A bruma derretia e corria sobre a pele e nos pelos das axilas e do ventre, fixando-se em minúsculas gotinhas. O tinha aprendido em Roissy a lentidão: perfumou-se por três vezes, deixando, todas as vezes, o perfume secar sobre seu corpo. Vestiu primeiro as meias e os sapatos altos, depois o forro da saia e a saia e, finalmente, o blusão. Pôs suas luvas e pegou a bolsa. Na bolsa levava uma caixa de pó-de-arroz, seu batom, um pente, sua chave, mil francos. Com as mãos já enluvadas, retirou do armário uma pele, e olhou a hora na cabeceira da cama: faltava um quarto para as oito. Sentou-se de lado na beira da cama, com os olhos fixos na campainha, esperando, imóvel, que esta tocasse. Quando finalmente a escutou e levantou-se para partir, vislumbrou no espelho, antes de apagar a luz, seu olhar ousado, doce e dócil.

Ao empurrar a porta do pequeno restaurante italiano diante do qual o carro tinha parado, a primeira pessoa que viu, no bar, foi René, que, sorrindo com ternura, tomou sua mão, e voltando-se para um tipo atlético, de cabelos grisalhos, apresentou-lhe, em inglês, Sir Stephen H. Ofereceram a O um banquinho entre os dois homens, e, quando ia sentar-se, René lhe disse a meia voz que tomasse cuidado para não amassar o vestido. Ajudou-a a puxar a saia para fora do banco e O sentiu na pele o couro frio e a borda guarnecida de metal no interior das coxas, pois só ousou sentar-se de lado, temendo ceder à tentação de cruzar os joelhos caso se sentasse completamente. Sua saia espalhava-se em volta do banco. Com o pé direito apoiava o salto numa das barras do banco e, com a ponta do outro, tocava o chão. O inglês, que se inclinara sem dizer nada, não a perdia de vista. O percebeu que olhava seus joelhos, suas mãos, e finalmente seus lábios, mas tão tranquilamente, e com uma atenção tão precisa e tão segura de si mesma, que sentiu-se pesada e medida como o instrumento que bem sabia que era, e foi como forçada por seu olhar e por assim dizer contra a vontade que retirou suas luvas. Imaginou que faria algum comentário ao ver suas mãos nuas - porque eram mãos originais, que mais pareciam as mãos de um rapaz do que as de uma mulher, e porque usava no anular esquerdo o anel de ferro com a tríplice espiral de ouro. Mas ele não disse nada e apenas sorriu: tinha visto o anel. René bebia um Martini, Sir Stephen, uísque. Enquanto terminava seu uísque lentamente e esperava que René tivesse bebido seu segundo Martini e O o suco de laranja que René tinha lhe encomendado, disse-lhe que, se quisesse dar-lhe o prazer de concordar, poderiam jantar na sala do subsolo, menor e mais tranquila do que aquela onde se encontrava o bar onde estavam. "É claro", disse O, pegando, sobre o bar, a bolsa e as luvas que tinha colocado ali. Sir Stephen ofereceu-lhe a mão direita para ajudá-la a descer do banco, e O pôs sua mão sobre a dele. Então, dirigindo-lhe a palavra diretamente, observou que suas mãos eram feitas para usar os ferros, pois estes iam-lhe muito bem. Mas, como falava em inglês, havia um ligeiro equívoco nos termos e podia-se hesitar em compreender se se tratava apenas do metal, ou também, e sobretudo, das correntes. Na sala do subsolo, que era uma simples adega caiada, mas fresca e alegre, havia apenas quatro mesas, só uma no entanto ocupada por alguns convivas cujo jantar já chegava ao fim. Nas paredes, havia um mapa da Itália gastronômica e turística, em cores suaves como as do sorvete de baunilha, de framboesa ou de pistache, o que sugeriu a O pedir um sorvete com amêndoas picadas e nata no fim do jantar. Sentia-se leve e feliz. Por baixo da mesa, o joelho de René tocava o seu e, quando ele falava, sabia que falava por ela. E ele também olhava para seus lábios. No final, deram-lhe permissão para o sorvete, mas não para o café. Sir Stephen convidou O e René para irem tomar café em sua casa. Tinham jantado levemente e O observou que quase não tinham bebido, e que a ela deixaram beber menos ainda: apenas meia garrafa de Chianti para os três. Observou também que jantaram rapidamente: eram só nove horas. "Dispensei o motorista", disse Sir Stephen "quer dirigir, René? O mais simples é irmos diretamente para a minha casa". René tomou a direção. O sentou-se ao seu lado, Sir Stephen ao lado de O. O carro era um grande Buick e os três couberam muito bem no banco da frente.
Tendo passado Alma, o Cours-la-Reine tornava-se claro porque as árvores não tinham folhas, e a praça da Concórdia estava seca e cintilante sob o céu sombrio desses tempos em que a neve se acumula e não se decide a cair. O escutou o barulhinho e sentiu um ar quente que subia por suas pernas: Sir Stephen tinha ligado o aquecimento. René continuou acompanhando o Sena pela margem direita, depois virou em Pont-Royal para ganhar a margem esquerda. Entre as margens de pedra, a água também parecia imóvel como a pedra, e negra. O lembrouse das hematitas que são negras. Quando tinha quinze anos, sua melhor amiga que tinha trinta e por quem estivera apaixonada usava um anel de hematita cravejado de pequenos diamantes. O gostaria de ter um colar dessas pedras negras, sem diamantes; um colar junto ao pescoço, talvez apertado no pescoço. Mas os colares que lhe davam agora -- não, não lhe eram dados tê-los-ia trocado pelo colar de hematitas, pelas hematitas do sonho? Reviu o quarto miserável para onde Marion a tinha levado, atrás da encruzilhada Turbigo, e como tinha desmanchado, ela própria, e não Marion, suas longas tranças de colegial, quando Marion tirou suas roupas e a deitou sobre a cama de ferro. Marion ficava bonita quando era acariciada, e é verdade que os olhos podem parecer estrelas; os seus pareciam vibrantes estrelas azuis. René parava o carro. O não reconheceu a pequena rua, uma das que uniam transversalmente a rua da Universidade à rua de Lille.

O apartamento de Sir Stephen situava-se no fundo de um pátio, na ala de um prédio antigo, e as peças estavam dispostas em fila. A que se encontrava no fim era a maior e a mais repousante, com seus móveis à inglesa, em acaju escuro e cobertos com sedas pálidas, em tons de amarelo e cinza. "Não vou lhe pedir para que cuide do fogo", disse Sir Stephen a O; "mas este sofá é para você. Sente-se por favor, René vai fazer o café. Só quero lhe pedir que me escute". O grande sofá em tons claros, adamascado, encontrava-se perpendicular à lareira, de frente para as janelas que davam para o jardim e de costas para as que davam para o pátio. O tirou sua pele e a colocou no encosto do sofá. Ao se virar percebeu que seu amante e seu anfitrião esperavam de pé que obedecesse ao convite de Sir Stephen. Colocou a bolsa ao lado da pele, desabotoou as luvas. Quando? Quando aprenderia, afinal -- e chegaria a aprender? -- a levantar suas saias para se sentar com um gesto tão furtivo que ninguém percebesse e que ela mesma pudesse esquecer sua nudez, sua submissão? Em todo o caso, não seria enquanto René e este estrangeiro a estivesse olhando em silêncio, como faziam agora. Finalmente cedeu. Sir Stephen reavivou o fogo e René, passando rapidamente para trás do sofá, segurou-a pelo pescoço e pelos cabelos e, inclinando sua cabeça sobre o encosto, beijou sua boca, tão longa e profundamente que O perdia o fôlego e sentia o interior de seu ventre dissolver-se e arder. René só a deixou para lhe dizer que a amava e logo recomeçou. As mãos de O, abertas e caídas, abandonadas com as palmas para cima, repousavam sobre o vestido negro que se espalhava como uma corola ao seu redor. Sir Stephen tinha se aproximado e quando, finalmente, René a deixou, foi o olhar cinzento e direto do inglês que O encontrou. Por mais atordoada que estivesse, e ofegante de felicidade, não lhe foi difícil perceber que ele a admirava e a desejava. Quem teria resistido à sua boca úmida e entreaberta, aos seus lábios intumescidos, ao seu pescoço branco inclinado sobre a gola negra do blusão de pajem, aos seus olhos que não fugiam, e que tinham se tornado maiores e mais claros? Mas o único gesto que Sir Stephen se permitiu foi acariciar suavemente com o dedo suas sobrancelhas e seus lábios. Depois, sentou-se à sua frente, do outro lado da lareira e, tendo René também se sentado numa poltrona, falou: "Acho que René nunca lhe falou sobre a sua família", disse. "Talvez saiba, entretanto, que sua mãe antes de casar-se com seu pai tinha se casado com um inglês, que por sua vez tinha um filho de um primeiro casamento. Sou esse filho, e fui educado por ela até o dia em que abandonou meu pai. Não tenho, portanto, nenhum parentesco com René e, no entanto, somos de algum modo irmãos. Que René a ama, eu sei. Teria percebido se não tivesse me dito e mesmo que nem se movesse: basta ver como olha para você. Também sei que é daquelas que estiveram em Roissy e imagino que irá voltar. Em princípio, o anel que usa me dá direito de dispor de você assim como todos os que conhecem seu sentido. Mas este é apenas um engajamento passageiro, o que esperamos de você é mais grave. Digo nós, pois, como vê, René se cala: quer que eu lhe fale por ele e por mim. Como irmãos, sou o mais velho, com dez anos mais do que ele. Entre nós há também uma liberdade tão antiga e tão absoluta que o que me pertence sempre lhe pertenceu, e o que lhe pertence, é meu. Quer consentir em participar disso? Se estou lhe pedindo, se peço o seu consentimento, é porque ele a engajará mais do que a sua submissão, que sei já ter sido adquirida. Antes de me responder, considere que sou apenas, e que só posso ser, uma outra forma de seu amante; e que sempre terá apenas um senhor: mais temível, acredito, que os homens a quem foi entregue em Roissy, porque estarei aí todos os dias, e além disso porque aprecio hábitos e rituais (and besides, I am fond habits and rites...)." A voz calma e pausada de Sir Stephen elevava-se num silêncio absoluto; as próprias chamas, na lareira, iluminavam sem fazer ruído. O estava fixada no sofá como uma borboleta presa por um alfinete, um longo alfinete feito de palavras e olhares que atravessava seu corpo pelo meio e pregava suas nádegas nuas e imóveis na seda morna. Não sabia onde se encontravam seus seios, sua nuca e suas mãos. Mas que os hábitos e rituais de que lhe falavam tivessem por objetivo a posse, entre outras partes de seu corpo, das suas longas coxas escondidas sob a saia negra, antecipadamente entreabertas, não duvidava. Os dois homens estavam à sua frente. René fumava, mas acendera uma dessas lâmpadas de capuz negro que devoram a fumaça, e o ar, já purificado pelo fogo da lareira, tinha o cheiro fresco da noite. "Vai me responder, ou quer saber mais?", disse ainda Sir Stephen. "Se aceitar", disse René, "eu mesmo lhe explicarei as preferências de Sir Stephen". "As exigências", corrigiu Sir Stephen. O mais difícil, pensava O, não era aceitar, e percebia que tanto um como o outro, como ela própria, não consideravam, nem por um segundo, que pudesse recusar. O mais difícil era simplesmente falar. Seus lábios queimavam e sua boca estava seca; faltava-lhe a saliva, uma angústia de medo e de desejo cerrava sua garganta, e suas mãos, finalmente reencontradas, estavam frias e úmidas. Se pudesse pelo menos fechar os olhos... Mas não. Dois olhares perseguiam o seu, aos quais não podia nem queria escapar. Atraíam-na para o que pensava ter deixado por muito tempo, talvez para sempre: Roissy. Pois, desde a sua volta, René só a tinha possuído com carícias, e o símbolo de que pertencia a todos os que conhecessem o segredo de seu anel tinha sido sem consequências; ou não tinha encontrado ninguém que o conhecesse, ou os que o compreenderam tinham se calado - a única pessoa de quem desconfiava era Jacqueline (e se Jacqueline tivesse estado em Roissy, por que não usava, ela também, o anel? Além disso, que direito a participação nesse segredo dava a Jacqueline sobre ela, e dar-lhe-ia algum direito?). Para falar, era necessário mexer-se? Mas não conseguia se mexer por sua própria vontade - uma ordem tê-la-ia feito levantar-se no mesmo instante, mas desta vez o que queriam dela não era que obedecesse a uma ordem, mas que viesse adiante das ordens, que se considerasse a si própria uma escrava e que se entregasse como tal. Era a isto que chamavam seu consentimento. Lembrou-se de que nunca tinha dito a René outra coisa que não fosse "eu o amo" e "eu sou sua". Parecia que hoje queriam que falasse, e que aceitasse com detalhes e com precisão o que só o seu silêncio até agora aceitara. Finalmente endireitou-se, e como se o que tivesse para dizer a sufocasse, desabotoou as primeiras fivelas da sua túnica até o sulco dos seios. Em seguida pôs-se totalmente de pé. Seus joelhos e suas mãos tremiam. "Eu lhe pertenço", disse finalmente para René, "serei o que quiser que eu seja" "Não", corrigiu ele; "nos pertence; repete depois de mim: eu lhes pertenço, serei o que quiserem que eu seja". Os olhos cinzentos e duros de Sir Stephen não a deixavam, nem os de René, onde se perdia, enquanto repetia lentamente depois dele as frases que lhe ditava, mas transpondo-as para a primeira pessoa, como num exercício de gramática. "Você reconhece que eu e Sir Stephen temos o direito...", dizia René, e O retomava tão claramente quanto podia: "Eu reconheço que você e Sir Stephen têm o direito..." "O direito de disporem de seu corpo à vontade, em qualquer lugar e de qualquer forma que nos agrade, o direito de mantê-la acorrentada, o direito de chicoteá-la como a uma escrava ou como a uma condenada, pelo menor erro ou por mero prazer, o direito de não considerar suas súplicas ou seus gritos, se a fizermos gritar. Acho que é isso que Sir Stephen queria saber de mim e de você mesma", disse René, "e quer também que eu lhe forneça os detalhes de suas exigência". O escutava seu amante, e as palavras que dissera em Roissy voltavam à sua memória. Eram quase as mesmas palavras, mas naquela ocasião escutara-as em seus braços, protegida por uma inverosimilhança que parecia um sonho e pelo sentimento de que existia numa outra vida, e de que talvez nem sequer existia. Sonho ou pesadelo, cenários de prisão, vestidos de gala, personagens mascarados, tudo a afastava de sua própria vida, até mesmo a incerteza da duração. Sentia-se, lá, como quem se encontra dentro da noite, no coração de um sonho que se reconhece e que recomeça; certa de que este sonho existe, de que vai chegar ao fim, desejando que chegue ao fim por medo de não poder aguentá-lo e ao mesmo tempo que continue para conhecer seu desenlace. Pois bem, o desenlace estava aí, quando não mais o esperava, e da forma como menos o esperava (considerando, como pensava agora, que fosse realmente o desenlace, e que atrás desse não se escondesse um outro desenlace, e que talvez um outro ainda existisse atrás do seguinte). Este, que sua lembrança trazia para o presente, consistia em que o que tinha realidade apenas num círculo fechado, num universo fechado, ia, repentinamente, contaminar todos os acasos e todos os hábitos de sua vida cotidiana, e sobre ela, e nela, não mais contentar-se com signos - os quadris nus, os corpetes que se desamarram, o anel de ferro - mas exigir uma realização. Era exato que René nunca tinha lhe batido e a única diferença entre a época em que o conhecera antes de tê-la levado para Roissy e o tempo decorrido desde que voltara era que agora usava tanto seus quadris e sua boca como antigamente usava seu ventre (e continuava a fazê-lo). Nunca soube se em Roissy os golpes de chicote que tinha recebido tão regularmente haviam sido dados por ele, mesmo que uma única vez (quando podia existir a questão, quando ela própria ou aqueles com quem estava usavam máscaras), mas não acreditava. Sem dúvida, o prazer que sentia no espetáculo do seu corpo amarrado e possuído, debatendo-se em vão, e de seus gritos era tão forte que não suportava a ideia de se distrair e ajudava com suas próprias mãos. Pode-se dizer que o confessava pois agora dizia, de um modo tão doce e meigo, sem se mexer na poltrona profunda onde se estendia, como se sentia feliz ao vê-la colocar-se por si mesma à disposição das ordens e dos desejos de Sir Stephen. Quando Sir Stephen quisesse que ela passasse a noite em sua casa, ou apenas uma hora, ou que a acompanhasse fora de Paris, ou mesmo em Paris, a algum restaurante ou espetáculo, telefonaria ou lhe mandaria seu carro -- a menos que o próprio René viesse buscá-la. Hoje, agora, era sua vez de falar. Consentia? Mas não podia falar. Esta vontade que de repente via-se solicitada a expressar era a vontade de fazer a entrega de si mesma, de dizer sim antecipadamente a tudo aquilo a que certamente queria dizer sim, mas a que seu corpo dizia não, pelo menos quando se tratava do chicote. Pois quanto ao resto, se quisesse ser honesta consigo mesma, sentia-se perturbada demais pelo desejo que lia nos olhos de Sir Stephen como para se enganar, e por mais trêmula que estivesse e talvez justamente porque estivesse tremendo, sabia que esperava, com mais impaciência do que ele, o momento em que a tocaria com suas mãos ou, talvez, com seus lábios. Sem dúvida dependia dela aproximar este momento. Por maior que fosse a coragem ou o desejo violento que sentia quando finalmente ia responder, sentiu-se enfraquecer e caiu no chão com o vestido espalhado à sua volta. Sir Stephen observou, à meia voz no silêncio, que o medo também lhe caia bem. Não se dirigia a ela, mas a René. O teve a impressão de que ele se continha para não avançar sobre ela e lastimou que se contivesse. Entretanto não o olhava, fixando os olhos em René, com pavor de que adivinhasse, nos seus, o que consideraria talvez uma traição. E, no entanto, não havia traição, pois, se pusesse na balança o desejo que tinha de pertencer a Sir Stephen e o de pertencer a René, não teria hesitado nem por um segundo. Na verdade, só se deixava levar por este desejo porque René tinha lhe permitido e até certo ponto deixado entender que o ordenava. Permanecia, entretanto, esta dúvida: a de saber se não se irritaria ao ver-se tão rapidamente e tão bem obedecido. O mais ínfimo sinal de sua parte bastaria para apagar imediatamente este desejo. Mas não fez nenhum sinal, contentando-se em pedir-lhe, pela terceira vez, uma resposta. O então balbuciou: "Consinto com tudo o que quiserem". Abaixou os olhos para suas mãos que, separadas entre seus joelhos, esperavam, depois confessou num murmúrio: "Gostaria de saber se vou ser chicoteada..." Durante um momento tão longo que teve tempo para arrepender-se vinte vezes de ter feito a pergunta, ninguém respondeu. Depois a voz de Sir Stephen disse lentamente: "Às vezes". Em seguida O escutou um fósforo que se acendia e o barulho de copos sendo retirados: sem dúvida um dos dois homens tomava mais uísque. René deixava O sem socorro. René se calava. "Mesmo se consentir agora", disse O, "mesmo se prometer agora, não poderei suportá-lo". "Só pedimos para se sujeitar, e se gritar ou se queixar, para consentir, agora, que seja em vão", retomou Sir Stephen. "Oh! por piedade", disse O, "ainda não", pois Sir Stephen se levantava. René também se levantava e, inclinando-se para ela, segurava-a pelos ombros. "Responda logo, aceita?" Disse finalmente que aceitava. Ele então levantou-a suavemente e, tendo se sentado no sofá, fez com que ficasse de joelhos diante dele. Com os braços estendidos e os olhos fechados, ela apoiou a cabeça e o busto no sofá. Então uma imagem que tinha visto há alguns anos a atravessou. Era uma curiosa estampa que representava uma mulher de joelhos como ela, diante de uma poltrona, numa sala ladrilhada. Uma criança e um cachorro brincavam a um canto, as saias da mulher estavam levantadas, e um homem de pé, bem perto, levantava sobre ela um punhado de varas. Todos usavam roupas do fim do século XVI e a estampa tinha o título que lhe parecera revoltante: a Correção Familiar. René com uma das mãos segurou seus pulsos enquanto com a outra levantou seu vestido, tão alto que sentiu a gaze plissada roçar seu rosto. Acariciava suas nádegas e fazia Sir Stephen observar as covinhas que as afundavam, e a suavidade do sulco entre as coxas. Depois, pressionando sua cintura com a mesma mão para salientar as nádegas, ordenou-lhe que abrisse mais os joelhos. Ela obedeceu sem dizer nada. As honras que René fazia de seu corpo, as respostas de Sir Stephen, a brutalidade dos termos que os dois homens empregavam mergulharam-na num estado de vergonha tão violento e tão inesperado que o desejo que tinha de pertencer a Sir Stephen se desvaneceu e ela pôs-se a esperar o chicote como uma libertação, a dor e os gritos como uma justificativa. Mas as mãos de Sir Stephen abriram o caminho de seu ventre, forçaram o sulco entre suas nádegas, deixaram-na e voltaram, acariciando-a até fazerem-na gemer, humilhada por estar gemendo, derrotada. "Deixo-a para Sir Stephen", disse então René. "Fique como está, ele a dispensará quando quiser". Quantas vezes em Roissy, tinha ficado assim de joelhos, oferecida a qualquer um ? Mas lá, sempre amarrada pelos braceletes que uniam suas mãos, era a feliz prisioneira a quem tudo era imposto, a quem nada era perguntado. Aqui, era a sua própria vontade que ficava seminua, enquanto um só gesto, o mesmo que bastaria para pô-la novamente de pé, bastaria também para cobri-la. Sua promessa a prendia tanto quanto os braceletes de couro e as correntes. Mas seria apenas sua promessa? E por mais humilhada que estivesse, ou justamente porque estava humilhada, não haveria também a doçura de ter valor justamente por sua própria humilhação, pela sua docilidade em curvar-se, por sua obediência em abrir-se? Com a saída de René e Sir Stephen tendo-o acompanhado até a porta, O esperou, sozinha, sem se mexer, sentindo-se na solidão, mais exposta, e na espera, mais prostituída do que tinha se sentido quando estavam com ela. A seda cinza e amarela do sofá era lisa sob a sua saia, através do náilon de suas meias sentia sob os joelhos o tapete de lã alta, ao longo da coxa esquerda, o calor da lareira -- onde Sir Stephen tinha acrescentado três achas que ardiam com muito barulho. Um relógio antigo, sobre uma cômoda, tinha um tique-taque tão leve que só se podia perceber quando tudo se calava em volta. O escutou-o atentamente e sentiu como era absurdo neste salão civilizado e discreto ficar na postura em que estava. Através das persianas fechadas ouvia-se o roncar sonolento de Paris depois da meia-noite. Amanhã de manhã, durante o dia, reconheceria, na almofada do sofá, o lugar em que tinha apoiado a cabeça? Voltaria algum dia a este mesmo salão, para ser tratada do mesmo modo? Sir Stephen estava demorando e O, que tinha esperado com tanta indiferença o desejo dos desconhecidos de Roissy, sentia a garganta apertada com a ideia de que em um minuto, em dez minutos, novamente ele poria suas mãos sobre ela. Mas não aconteceu exatamente como previra. Ouviu quando abria a porta e atravessava a sala. Ficou por um tempo de pé, de costas para o fogo, observando O; depois, numa voz muito baixa, disse-lhe para se levantar e sentar-se novamente. Surpresa e quase constrangida, obedeceu. Ele lhe trouxe delicadamente um copo de uísque e um cigarro, que ela recusou. Viu então que ele vestia um roupão muito sóbrio, em popeline cinza - do mesmo cinza de seus cabelos. Suas mãos eram longas e secas, e as unhas planas, cortadas curtas, muito brancas. Nesse momento, Sir Stephen surpreendeu o olhar de O, que corou: eram bem estas mesmas mãos, duras e insistentes, que tinham se apoderado do seu corpo e que agora ela temia e esperava. Mas ele não se aproximava. "Gostaria que ficasse nua", disse. "Mas antes desabotoe só o casaco, sem se levantar". O desabotoou as grandes fivelas douradas e fez cair de seus ombros o agasalho negro que colocou na outra ponta do sofá, onde já se encontravam a sua pele, suas luvas e sua bolsa. "Acaricie um pouco o bico dos seios", disse então Sir Stephen, acrescentando: "Vai precisar uma maquilagem mais escura, esta é muito clara". Perplexa, O roçou o bico dos seios com a ponta dos dedos e ao sentir que endureceram e se levantaram, escondeu-os com as palmas: "Ah! Não", disse Sir Stephen; e retirou suas mãos, inclinando-a para trás, sobre o sofá; seus seios eram pesados para o busto delicado e afastaram-se levemente para as axilas. Tinha a nuca apoiada no encosto, as mãos dos lados dos quadris. Por que Sir Stephen não aproximava sua boca, por que não estendia a mãos para os bicos que desejou ver levantados e que ela sentia tremerem por mais imóvel que ficasse, só com o movimento da respiração? Mas ele tinha se aproximado e sentado meio de lado no braço do sofá, não a tocava. Fumava, e um movimento de sua mão, que O nunca soube se foi ou não voluntário, fez voar um pouco quase quente entre seus seios. O teve o sentimento de que ele queria insultá-la, com seu desdém, com seu silêncio, com o desprendimento que havia na sua atenção. No entanto, há pouco desejava-a, e mesmo agora ainda a desejava; podia perceber isso sob o tecido leve de seu roupão. Por que não a possuía nem que fosse para feri-la? O detestou-se por seu próprio desejo, e detestou Sir Stephen pelo domínio que tinha sobre si mesmo. Queria que ele a amasse, esta é a verdade: que ficasse impaciente para tocar seus lábios e penetrar seu corpo, que a destruísse se fosse necessário, mas que não pudesse, diante dela, guardar a calma e dominar seu prazer. Era-lhe indiferente, em Roissy, que aqueles que se serviam dela tivessem qualquer sentimento que fosse; eram apenas instrumentos através dos quais seu amante tinha prazer com ela, pelos quais ela se tornava o que ele quisesse, polida, lisa e doce como uma pedra. Todas as mãos eram as suas mãos, todas as ordens, as suas ordens. Aqui não. René tinha-a entregado a Sir Stephen, mas via-se bem que não era porque quisesse obter mais dela, nem pela alegria de entregá-la, mas para compartilhar o que mais amava, agora, com Sir Stephen, como sem dúvida, antigamente, quando eram mais jovens, tinham compartilhado uma viagem, um barco ou um cavalo. Era com relação a Sir Stephen que tinha sentido compartilhar, muito mais do que com relação a ela. O que cada um procuraria nela, seria a marca do outro, o traço da passagem do outro. Um momento antes, quando a mantinha de joelhos e seminua, apoiada nele, enquanto Sir Stephen com as duas mãos abria suas coxas, René tinha explicado a Sir Stephen por que o acesso às nádegas de O era tão fácil e por que tinha ficado tão contente por terem-na preparado desta maneira: era porque se lembrara de que seria agradável para Sir Stephen ter constantemente à sua disposição o caminho que mais lhe agradava. Chegou a acrescentar que, se quisesse, deixar-lhe-ia esse caminho para seu uso exclusivo. "Ah! Com muito gosto", dissera Sir Stephen, observando entretanto que apesar de tudo ainda corria o risco de rasgar O. "O lhe pertence", respondera René; e inclinando-se para ela tinha lhe beijado as mãos. Só a ideia de que René podia assim considerar a possibilidade de se privar de alguma parte sua, deixara O transtornada. Viu nisto o sinal de que seu amante importava-se mais com Sir Stephen do que com ela. E percebeu também que, embora René tantas vezes tivesse repetido que amava nela o objeto em que a tinha transformado, sua total disponibilidade e a liberdade que sentia em relação a ela - como se possui um móvel com o qual se tem mais prazer dando-o do que guardando-o para si - nunca tinha acreditado totalmente nisso. Via ainda outro sinal do que não podia ser outra coisa que uma deferência para com Sir Stephen no fato de que René, que amava tão profundamente vê-la sob os corpos ou os golpes de outros, que olhava com uma ternura tão constante, com um reconhecimento tão incansável sua boca abrir-se para gemer ou gritar, seus olhos fecharem-se sobre as lágrimas, tinha-a entretanto deixado, depois de assegurar-se ao expô-la, abrindo-a como se abre a boca de um cavalo para mostrar que é bastante jovem, que Sir Stephen achava-a suficientemente bela, ou, a rigor, suficientemente cômoda para ele, e que quisesse aceitá-la. No entanto, este comportamento, ultrajante talvez, não mudava nada no amor de O por René. Sentia-se feliz por contar para ele, o suficiente para que sentisse prazer em ultrajá-la, como os crentes agradecem a Deus por humilhá-los. Mas em Sir Stephen adivinhava uma vontade firme e gélida que o desejo não dobraria, e diante da qual até agora, por mais comovente e submissa que fosse, não significava absolutamente nada. Não fosse assim por que teria sentido tanto medo?

O chicote no cinto dos criados de Roissy, as correntes que quase sempre carregava, tinham-lhe parecido menos assustadores do que a tranqüilidade com que Sir Stephen olhava seus seios sem tocá-los. Sabia como pareciam frágeis, assim pesados, lisos e inchados nos ombros pequenos e no busto delicado. Não conseguia parar de tremer, seria necessário parar de respirar. Esperar que esta fragilidade desarmasse Sir Stephen era inútil, e sabia muito bem que era justamente o contrário que acontecia: sua doçura assim oferecida atraía tanto os ferimentos quantos as carícias, tanto as unhas quanto os lábios. Teve um momento de ilusão: a mão direita de Sir Stephen, que segurava o cigarro, roçou com a ponta do dedo médio o bico de um seio, que obedeceu e tornou-se ainda mais duro. Que representava para Sir Stephen apenas uma espécie de jogo, uma verificação, como se verifica a excelência e o bom funcionamento de um mecanismo, O não tinha dúvidas. Sem tirar o braço de sua poltrona, Sir Stephen disse-lhe então para tirar a roupa. Nas mãos úmidas de O os colchetes escorregavam e teve que recomeçar duas vezes a desabotoar, sob a saia, a anágua de seda preta. Quando, enfim, ficou totalmente nua, só com as sandálias de verniz e as meias de náilon pretas enroladas acima dos joelhos sublinhando a delicadeza de suas pernas e a brancura de suas coxas, Sir Stephen, que também se levantara, segurou-a com uma das mãos dentro de seu ventre e empurrou-a para o sofá. Fez com que ficasse de joelhos com as costas encostadas no sofá e mandou que abrisse um pouco mais as coxas para apoiar-se mais perto dos ombros do que da cintura. As mãos de O repousavam junto aos tornozelos e desse modo seu ventre ficava entreaberto, e sobre os seios, oferecidos, seu pescoço inclinava-se para trás. Não ousava olhar Sir Stephen no rosto, mas via suas mãos que desamarravam o cinto do roupão. Quando foi para cima dela, sempre ajoelhada, segurando-a pela nuca, penetrou em sua boca. Não era a carícia de seus lábios que procurava, mas o fundo da sua garganta. Penetrou-a durante muito tempo; O sentia inchar-se e endurecer nela a mordaça de carne que a sufocava e cujo choque lento e repetido arrancava-lhe lágrimas. Para melhor penetrá-la, Sir Stephen tinha acabado de se pôr de joelhos sobre o sofá, de ambos os lados do seu rosto, e por instantes suas nádegas repousavam no peito de O, que sentia queimar seu ventre, inútil e desprezado. Por mais tempo que assim tivesse se deleitado, não acabou, entretanto, seu prazer, mas retirou-se em silêncio, ficando de pé sem fechar o roupão. "Você é fácil, O", disse-lhe. "Ama René, mas é fácil. René percebe que você deseja todos os homens que a querem e que, levando-a para Roissy e entregando-a a outros, dá-lhe tantos álibis quanto a sua própria facilidade?" "Amo René", respondeu O. "Ama René, mas sente desejo por mim, entre outros", continuou Sir Stephen. Sim, tinha desejo por ele, mas e se René, ao saber disso, mudasse? Podia apenas calar-se e abaixar os olhos, pois seu olhar nos olhos de Sir Stephen já teria sido uma confissão. Sir Stephen inclinou-se, então, para ela e, segurando-a pelos ombros, puxou-a para o tapete. Deu por si de costas, com as pernas levantadas e dobradas sobre o corpo. Sir Stephen, que tinha se sentado no sofá no mesmo lugar em que um momento antes estivera apoiada, segurou seu joelho direito e puxou-o para si. Como se encontrasse na frente da chaminé, à luz da lareira, bem próxima, iluminava violentamente o duplo sulco totalmente aberto de seu ventre e das suas nádegas. Sem largá-la, Sir Stephen ordenou-lhe bruscamente que se acariciasse, mas sem fechar as pernas. Perturbada, O estendeu docilmente sua mão direita sob o ventre, encontrando com os dedos, já liberada dos pelos que a protegiam, já ardente, a aresta de carne onde se reuniam os frágeis lábios do seu ventre. Mas sua mão caiu, e balbuciou: "Não posso". E, com efeito, não podia. Nunca tinha se acariciado, a não ser furtivamente no calor e na obscuridade de sua cama quando dormia sozinha, sem nunca, entretanto, buscar o prazer até o fim. Mas às vezes encontrava-o mais tarde em sonhos, e despertava decepcionada de que tivesse sido tão forte e tão fugaz. O olhar de Sir Stephen insistia. Não pôde suportá-lo e, repetindo "não posso", fechou os olhos. O que revia, de que não conseguia fugir, e que lhe dava a mesma vertigem de repulsa que todas as vezes em que o testemunhara, quando tinha quinze anos, era Marion, com uma perna sobre o braço da poltrona e a cabeça meio pendente sobre o outro braço, acariciando-se e gemendo na sua frente. Marion contara-lhe que um dia tinha se acariciado assim no escritório pensando estar sozinha, e que o chefe de seu serviço tinha entrado de imprevisto e a tinha surpreendido. O lembrava-se do escritório de Marion, um ambiente nu, de paredes em tom verde-pálido, que recebia a luz do dia vinda do Norte, através dos vidros empoeirados. Só havia aí uma única poltrona destinada aos visitantes e que ficava na frente da mesa. "Você fugiu?", tinha-lhe perguntado O. "Não", respondera Marion, "ele me pediu para recomeçar, mas fechou a porta a chave, fez-me tirar a calcinha e empurrou a poltrona para perto da janela." O tinha se sentido invadida de admiração pelo que considerava ser coragem de Marion, e ao mesmo tempo de horror, recusando-se ferozmente a acariciar-se diante de Marion, e jurado que nunca, nunca se acariciaria na frente de ninguém. Marion, rindo, dissera: "Você vai ver quando seu amante lhe pedir". René nunca tinha lhe pedido. Teria obedecido? Ah! Certamente, mas com que terror de ver surgir nos olhos de René a mesma repulsa que ela própria sentira diante de Marion! O que era absurdo; e que fosse Sir Stephen era mais absurdo ainda. Que lhe importava a repulsa de Sir Stephen? Mas não, não podia. Pela terceira vez murmurou: "Não posso". Por mais baixo que tivesse falado, ele a escutou e, deixando-a, levantou-se, fechou seu roupão e ordenou a O que se levantasse. "É esta a sua obediência?", disse. Depois, com a mão esquerda segurou seus pulsos e com a direita esbofeteou-a com toda a força. Ela cambaleou e teria caído se ele não a tivesse segurado. "fique de joelhos e me escute", disse, "temo que René a tenha educado muito mal". "Sempre obedeço René", balbuciou. "Você confunde amor e obediência. Vai me obedecer sem me amar e sem que eu a ame". O sentiu-se então tomada da mais estranha revolta, negando em silêncio no interior de si mesma as palavras que ouvia, negando suas promessas de submissão e de escravidão, negando seu próprio consentimento, seu desejo, sua nudez, seu suor, suas pernas trêmulas e as olheiras de seus olhos. Debateu-se, cerrando os dentes de raiva quando, fazendo-a curvar-se, ou melhor, prosternar-se, com os cotovelos no chão e a cabeça entre os braços e levantando-a pelos quadris, Sir Stephen forçou entre suas nádegas para rasgá-la como dissera a René que o faria. Da primeira vez ela não gritou. Recomeçando então mais brutalmente, ele fez com que gritasse. E todas as vezes em que ele se retirava e voltava, portanto, todas as vezes em que decidia, ela gritava. Gritava tanto de dor como de revolta, e ele não se enganava a este respeito. Ela também o sabia, e isso significava que de qualquer forma estava vencida e que ele estava contente por obrigá-la a gritar. Quando terminou, levantou-a, e começou a preparar-se para dispensá-la, enquanto observava que o que tinha ejaculado ao sair iria tingir-se aos poucos com o sangue do ferimento que lhe tinha feito, que este ferimento a queimaria enquanto não tivesse se acostumado e que continuaria a forçar a passagem. Certamente não iria privar-se deste uso dela que René lhe tinha reservado, portanto, não deveria esperar ser poupada. Lembrou-lhe que tinha consentido em ser escrava de René e sua, mas que lhe parecia improvável que soubesse com todo o conhecimento de causa em que tinha se engajado. Quando finalmente compreendesse, seria tarde demais para escapar. Enquanto o escutava, O pensava que talvez, por mais que demorasse para subjugá-la, fosse tarde demais também para que não se apaixonasse por sua obra e para que não a amasse um pouco, pois toda a sua resistência interior e a tímida recusa que ousava manifestar só tinham este motivo: queria existir para Sir Stephen, por pouco que fosse, como existia para René; que ele sentisse por ela mais do que desejo. Não que estivesse apaixonada, mas porque via claramente que René amava Sir Stephen com a paixão dos meninos pelos homens mais velhos e sentia-se pronta a sacrificar-se para satisfazer a Sir Stephen, na medida em que Sir
Stephen o exigisse. Sabia, com a certeza da intuição, que René calcaria sua atitude sobre a de Sir Stephen e que se este lhe mostrasse desprezo, por maior que fosse o seu amor por ela, seria contaminado por este desprezo, como nunca fora nem sonhara ser pela atitude dos homens de Roissy. Isso porque, em Roissy, ele é que era o senhor, e a atitude de todos aqueles a quem a entregava, dependia da sua. Agora não era mais o senhor, pelo contrário. Sir Stephen era o senhor de René, sem que o próprio René o percebesse totalmente; ou seja, René admirava-o e gostaria de imitá-lo e de rivalizar com ele, e era por isso que compartilhavam tudo, e foi por isso que lhe dera O; desta vez era óbvio que tinha sido dada. René sem dúvida continuaria a amá-la, na medida em que Sir Stephen achasse que ela valia a pena, e que também a amasse. Até agora era óbvio que Sir Stephen seria o seu senhor, e, não importando o que René imaginasse, o seu único senhor, na relação precisa que liga o senhor ao escravo.

Dele não esperava nenhuma piedade, mas não poderia esperar arrancar-lhe algum amor? Semi-estendido na grande poltrona que ocupara junto ao fogo antes da partida de René, ele a deixara nua, de pé a sua frente, dizendo-lhe para esperar as suas ordens. O esperou, calada. Depois, levantando-se, disse-lhe para segui-lo. Ainda nua, com suas sandálias de saltos altos e suas meias negras, acompanhou-o pela escada que vinha do térreo e entrou atrás dele, num quartinho tão pequeno que só tinha lugar para uma cama a um canto e para uma penteadeira e uma cadeira entre a cama e a janela; ligava-se a um quarto maior que era o de Sir Stephen e ambos abriam-se para o mesmo banheiro. O lavou-se e enxugou-se - a toalha ficou ligeiramente manchada de cor-de-rosa; tirou as sandálias e as meias e deitou-se nos lençóis frios. As cortinas da janela estavam abertas mas a noite estava escura. Antes de fechar a porta de comunicação, O já estando deitada, Sir Stephen aproximou-se e beijou a ponta de seus dedos, como tinha feito no bar quando O descera do banquinho, ao cumprimentá-la por seu anel de ferro. Assim, tinha-a penetrado com suas mãos e o seu sexo, tinha saqueado sua nádegas e sua boca, mas só consentia em colocar os lábios sobre a ponta de seus dedos. O chorou e só conseguiu dormir quando já amanhecia.

No dia seguinte, um pouco antes do meio-dia, o motorista de Sir Stephen conduziu O de volta à sua casa. Acordara às dez horas; uma velha mulata tinha lhe trazido uma xícara de café, preparado seu banho e trazido suas roupas, com exceção da pele, das luvas e da bolsa, que encontrou no sofá da sala quando desceu. A sala estava vazia, com as persianas e as cortinas abertas. Podia-se ver, diante do sofá, um jardim estreito e verde como um aquário, plantado apenas com heras, azevinhos e arbustos. Quando vestia o casaco, a mulata veio dizer-lhe que Sir Stephen tinha saído e entregou-lhe uma carta só com sua inicial sobre o envelope. A folha branca continha duas linhas: "René telefonou para dizer que irá buscá-la no estúdio às seis horas", assinadas com um S; e um post-scriptum: "A chibata é para sua próxima visita". O olhou em volta: sobre a mesa, entre as duas poltronas onde Sir Stephen e René tinham se sentado na véspera, perto de um vaso de rosas amarelas, havia uma longa e fina chibata de couro. A criada esperava-a na porta. O pôs a carta em sua bolsa e saiu.

Então René tinha telefonado para Sir Stephen e não para ela. Chegando em casa, após ter tirado as roupas e almoçado, envolta em seu roupão, ainda teve tempo para refazer a maquilagem e o penteado, para vestir-se e ir para o estúdio, onde deveria estar às três horas. O telefone não tocou, René não a chamou. Por quê? O que Sir Stephen lhe teria dito? Como teriam falado dela? Lembrou-se das palavras com as quais tinham discutido tão naturalmente diante dela a comodidade de seu corpo com relação às exigências dos seus. Talvez fosse porque, em inglês, não estivesse acostumada com um vocabulário deste tipo, mas os únicos termos franceses que lhe pareciam equivalentes eram de uma baixeza absoluta. É verdade que tinha passado entre tantas mãos quanto as prostitutas dos bordéis; por que então deveriam tratá-la de outra maneira? "Eu o amo René, eu o amo", repetia, chamando-o baixinho na solidão do seu quarto. "Eu o amo; faça de mim o que quiser, mas não me deixe, por Deus, não me deixe". Quem terá piedade daqueles que esperam? Pode-se reconhecê-los muito bem por sua doçura, por seu falsamente atento; atento, mas a uma outra coisa; não àquilo que olham, mas a uma ausência. Durante três horas, no estúdio, onde uma pequena manequim ruiva e roliça que não conhecia posava para chapéus, O foi essa ausente, atraída para o interior de si mesma, na pressa de que os minutos passassem, e na angústia. Sobre uma blusa e uma anágua de seda vermelha tinha vestido uma saia escocesa e um casaco curto de camurça. O vermelho de sua blusa, sob o casaco entreaberto, empalidecia ainda mais seu rosto já pálido, e a pequena manequim ruiva comentou que estava com um aspecto fatal. "Fatal para quem?", pensou O. Fosse há dois anos, antes de ter encontrado René e de tê-lo amado, teria jurado: "fatal para Sir Stephen", e ainda: "ele vai ver". Mas seu amor por René e o amor de René por ela tinham-lhe tirado todas as suas armas; em vez de trazer-lhe novas provas de seu poder, havia-lhe tirado as que possuíra até então. Antigamente tinha sido indiferente e volúvel, divertindo-se em seduzir com uma palavra ou com um gesto os rapazes que se apaixonavam por ela, mas sem dar-lhes nada, entregando-se depois por capricho, uma vez, uma só, para recompensar, mas também para inflamar ainda mais e tornar ainda mais cruel uma paixão que não compartilhava. Estava segura de que a amavam. Um deles tinha tentado se matar. Ao voltar curado da clínica para onde tinha sido levado, ela fora à sua casa onde ficara nua e, deitada no seu divã, proibira-lhe de lhe tocá-la. Pálido de desejo e de dor, ele a tinha contemplado em silêncio durante duas horas, petrificado por sua palavra dada. Nunca mais quis vê-lo. Não que desconsiderasse o desejo que inspirava; compreendia-o ou pensava que compreendê-lo, tanto mais que experimentava um desejo análogo (pensava) por suas amigas ou por jovens mulheres desconhecidas. Algumas cediam, e levava-as então a hotéis excessivamente discretos, de corredores estreitos e divisórias transparentes a todos os barulhos; outras repeliam-na com horror. Mas o que imaginava ser desejo não era mais do que gosto pela conquista, nem seus modos de rapaz, nem o fato de que tinha tido alguns amantes - se podia chamá-los amantes -, nem sua dureza, nem mesmo sua coragem serviram para alguma coisa quando encontrou René.

Em oito dias conheceu o medo, mas também a certeza; a angústia, mas também a felicidade. René atirou-se sobre ela como um pirata sobre uma presa e tornou-se cativa nas delícias, sentindo nos pulsos e nos tornozelos, em todos os membros e no mais secreto do seu corpo e do seu coração, laços mais invisíveis do que os mais finos cabelos, mais poderosos do que os cabos com que os liliputianos tinham amarrado Gulliver, laços que seu amante apertava ou afrouxava com um olhar. Não era mais livre? Ah! Graças a Deus, não era mais livre. Mas sentia-se leve como uma deusa sobre as nuvens, como um peixe na água, perdida de felicidade. Perdida, porque estes finos cabelos, estes cabos que René tinha todos em sua mão, eram a única rede de forças por onde, de agora em diante, passava por ela a corrente da vida. E isso era tão verdadeiro que, quando René afrouxava os laços - ou quando imaginava que o fazia -, quando parecia ausente, quando se afastava com indiferença, como lhe parecia, ou quando se demorava para vir vê-la ou para responder a suas cartas, e quando O pensava que ele não a amava mais, tudo nela se apagava e sufocava. A relva tornava-se negra, o dia não era mais dia nem a noite, noite, mas máquinas infernais que faziam alternar o claro e o escuro para o seu suplício. A água fresca dava-lhe náuseas. Sentia-se uma estátua de cinzas, acre, inútil e condenada como as estátuas de sal de Gomorra. Pois era culpada. Os que amam a Deus e a quem Deus abandona na noite escura são culpados, já que foram abandonados. Procuram seus erros na lembrança. Assim O procurava os seus. Só encontrava insignificantes complacências, mais na sua disposição do que em seus atos, pelos desejos que despertava em outros homens, aos quais só dava atenção na medida em que a felicidade que lhe dava a certeza de pertencer a René a preenchia, e em que o abandono em que se encontrava com relação a ele tornava-a invulnerável, irresponsável e todos os seus atos sem consequências. Mas que atos? Pois só podia recriminar-se por seus pensamentos e por tentações fugidias. No entanto, não havia dúvidas de que era a culpada e de que, sem querer, René a punia por um erro que não conhecia (pois tudo permanecia no seu íntimo) mas que Sir Stephen tinha imediatamente denunciado: sua facilidade. O ficava feliz quando René mandava chicoteá-la e a prostituía, em parte porque sua submissão apaixonada daria a seu amante a prova de que lhe pertencia, mas também porque a dor, a vergonha do chicote e o ultraje que lhe infligiam aqueles que a obrigavam ao prazer quando a possuíam, e os que se compraziam sem nenhuma consideração pelo seu prazer pareciam-lhe o próprio resgate do seu erro. Houve abraços que lhe pareceram imundos, mãos sobre seus seios que forma um intolerável insulto, bocas que aspiraram seus lábios e sua língua como moles e ignóbeis sanguessugas, línguas e sexos, animais viscosos, que se acariciaram em sua boca fechada, no sulco de seu ventre e de suas nádegas, que fechava com todas as forças, que a encheram de revolta por tanto tempo que o chicote não fora demais para reduzi-la; tinha acabado por se abrir, entretanto, com uma repulsa e um servilismo abomináveis. E se, apesar disso, Sir Stephen tivesse razão? E se o aviltamento lhe fosse agradável? Nesse caso, quanto maior fosse sua baixeza, mais misericordioso era René, ao consentir em fazer de O o instrumento de seu prazer. Quando criança tinha lido em letras vermelhas sobre a parede branca de um quarto onde morara durante dois meses no País de Gales um texto bíblico como os protestantes costumam inscrever em suas casas: "É terrível cair entre as mãos do Deus vivo." Todas as vezes em que René adiava o momento de vê-la, como tinha feito nesse dia, e que se demorava -- pois seis horas já haviam passado e já eram seis e meia -- O ficava assim, fechada na loucura e no desespero, inutilmente. René chegava, estava ai, não tinha mudado, amava-a, mas um conselho administrativo ou um trabalho suplementar tinha-o retido e não tinha tido tempo de avisá-la. O emergia subitamente de sua câmara de asfixia, mas cada um desses acessos de terror deixavam no fundo um surdo pressentimento, um aviso de infelicidade: pois René tanto podia ter se esquecido de avisar como um jogo de golfe ou um bridge podiam tê-lo retido, ou talvez algum outro rosto, pois amava O mas era livre, seguro quanto a ela e leve, muito leve. Não viria um dia de morte e de cinzas, um dia entre os dias, dar razão à loucura, quando a câmara de gás não mais se abriria? Ah! Que o milagre dure, que a graça não se desfaça... que René não me deixe! O não via e recusava-se a ver cada dia além do dia seguinte e do outro dia, cada semana, além da semana seguinte; e cada noite com René era uma noite para sempre.

Às sete horas, finalmente, René chegou, tão alegre ao encontrá-la que a beijou na frente do eletricista que consertava o holofote, na frente da pequena manequim ruiva que saía do quarto de maquilagem, na frente de Jacqueline, que ninguém esperava e que tinha entrado repentinamente. "Que encantador", disse Jacqueline a O; "estava passando e vinha pedir-lhe minhas últimas fotos, mas acho que este não é o momento e já estou de saída". "Senhorita, eu lhe suplico", gritou René sem largar O, que segurava pela cintura. "Senhorita, não vá!" O apresentou René a Jacqueline e Jacqueline a René. A manequim ruiva, despeitada, voltara a entrar em sua cabine, o eletricista fingia estar ocupado. O olhou para Jacqueline e sentiu que René seguiu seu olhar. Jacqueline vestia um traje de esqui como só usam as estrelas que não praticam esqui. Uma malha negra marcava seus seios pequenos e afastados; as calças justas, suas pernas longas, de filha das neves. Tudo nela lembrava a neve: o reflexo azulado de seu casaco de foca cinzenta era a neve à sombra; o reflexo orvalhado de seus cabelos e de seus cílios, a neve ao sol. Nos lábios usava um batom carmesim, e quando sorriu e levantou os olhos, O pensou que ninguém poderia resistir ao desejo de beber desta água verde e inconstante sob os cílios orvalhados, de arrancar sua malha para pousar as mãos sobre aqueles seios tão pequenos. Pronto: mal chegara René e, na certeza de sua presença, já reencontrava o gosto pelos outros, por si mesma e pelo mundo. Desceram os três. Na rua Royale, a neve que durante duas horas tinha caído em grandes flocos, turbilhonava agora como se fossem mosquitinhos brancos picando-os no rosto. O sal espalhado sobre a calçada rangia sob os saltos e descompunha a neve, e O sentiu o sopro gelado que desprendia subir por suas pernas e tocar suas coxas nuas.

O tinha uma ideia bem clara do que procurava nas mulheres. Não que quisesse dar a impressão de rivalizar com os homens, ou de compensar, por um comportamento masculino, alguma inferioridade feminina que absolutamente não experimentava. É verdade que há vinte anos tinha-se surpreendido ao fazer a corte à mais bonita de suas colegas, tirando a boina para dizer-lhe bom-dia, afastando-se para deixá-la passar e oferecendo sua mão para ajudá-la a descer de um táxi, assim como fazia questão de pagar quando tomavam chá em alguma confeitaria. Costumava beijar-lhe a mão e ocasionalmente a boca, se possível, na rua. Mas ostentava esses modos mais para fazer escândalo, mais por infantilidade do que por convicção. Entretanto, o gosto que tinha pela doçura dos lábios pintados, muito suaves, cedendo sob os seus, pelo brilho de esmalte ou de pérola dos olhos semicerrados na penumbra dos divãs às cinco horas da tarde, quando já foram fechadas as cortinas e já se acendeu a lâmpada sobre a chaminé, pelas vozes que dizem: "mais ah! Por favor, mais", pelo tenaz odor marinho que lhe ficava nos dedos, este gosto era real e profundo. Igualmente viva era a alegria que lhe dava a caça. Não talvez pela caça em si mesma, por mais divertida e apaixonante que fosse, mas pela liberdade perfeita que experimentava então. Ela, e só ela, conduzia o jogo (o que nunca fazia com um homem, a não ser por subterfúgios). Era ela que tomava a iniciativa das palavras, dos encontros, dos beijos, a ponto de preferir que não a beijassem primeiro e de quase nunca tolerar, já que tinha amantes, que a moça a quem acariciava, a acariciasse por sua vez. Tanto tinha pressa em ter sua amiga nua sob seus olhos, sob suas mãos, quanto lhe parecia inútil tirar sua própria roupa. Frequentemente procurava pretextos para evitá-lo, dizia que estava com frio, ou que se encontrava num mau dia. Havia, aliás, poucas mulheres em quem não encontrasse alguma beleza. Lembrava-se de quando, tendo acabado de deixar o liceu, tentara seduzir uma menina feia e desagradável, sempre de mau humor, unicamente porque tinha uma floresta de cabelos louros que fazia sombra e luz em mechas mal cortadas sobre uma pele descorada, mas cujos fios eram suaves, cerrados, finos e totalmente foscos. Mas a menina a escorraçara e, se o prazer alguma vez iluminou aquele rosto ingrato, não foi para O. Pois O amava com paixão ver espalhar-se por estes rostos esse vapor que os torna tão lisos e tão jovens, de uma juventude fora do tempo, que não conduz à infância mas que incha os lábios, que aumenta os olhos como se estivessem pintados, que torna a íris cintilantes e claras. Havia mais admiração do que amor-próprio, pois não era a sua obra que a emocionava; tinha experimentado a mesma perturbação em Roissy diante do rosto transfigurado de uma moça possuída por um desconhecido. A nudez, a entrega dos corpos, transtornavam-na a ponto de parecer-lhe que recebia um presente do qual poderia oferecer o equivalente quando suas amigas consentiam em se mostrarem nuas em algum quarto fechado; pois a nudez das férias, ao sol e nas praias, deixava-a insensível - não porque fosse pública, mas porque, sendo pública e não sendo absoluta, tonava-se, de alguma forma protegida. A beleza das outras mulheres, que com constante generosidade inclinava-se a considerar superior à sua, tranquilizava-a, entretanto, porque via nestes espelhos pouco habituais como um reflexo da sua própria beleza. O poder que reconhecia em suas amigas sobre ela era-lhe ao mesmo tempo a garantia do seu próprio poder sobre os homens. Ficava feliz e achava natural que os homens insistissem em pedir-lhe o que pedia e não dava às mulheres, ou dava-lhes muito pouco. Era assim, ao mesmo tempo e constantemente, cúmplice de umas como dos outros, e ganhava nos dois times. Havia partidas difíceis. Que O estava apaixonada por Jacqueline, nem mais nem menos do que tinha estado por muitas outras e, admitindo-se que o termo “apaixonada” (era dizer muito) fosse conveniente, não havia dúvidas. Mas por que não mostrava nada do que sentia?

Quando os brotos surgiram nos álamos dos cais, quando o dia, mais lento para morrer, permitiu que os namorados se sentassem nos jardins à saída dos escritórios, achou que finalmente teria coragem para enfrentar Jacqueline. Durante o inverno, ela tinha-lhe parecido triunfante demais sob suas peles novas, colorida demais, intocável e inacessível. E sabendo disto. A primavera entregava-a aos tailleurs, aos saltos baixos e às blusas de malha. Se parecia com seus cabelos cortados retos, com as meninas insolentes do liceu, que, aos dezesseis anos, também menina de liceu, O segurava pelos punhos e levava em silêncio para algum vestiário vazio, empurrando-as sobre os casacos pendurados. Os casacos caíam dos cabides, O morria de rir. Usavam as blusas do uniforme, em algodão cru, com suas iniciais bordadas em linha de algodão vermelha sobre o peito. Com três anos de intervalo, a três quilômetros de distância, Jacqueline tinha, num outro liceu, usado as mesmas blusas. O soube disso por acaso, num dia em que Jacqueline posou para vestidos caseiros, suspirando porque, se tivessem sido roupas tão bonitas no liceu, teriam sido de algum modo mais felizes. Ou então se tivessem sabido usar, sem nada debaixo, as que lhe eram impostas. "Como sem nada?", perguntou O "Sem vestido, é claro", respondeu Jacqueline, fazendo O enrubescer. Não se acostumara ainda a ficar nua sob o vestido e qualquer palavra ambígua parecia-lhe uma alusão à sua condição. Em vão repetia para si mesma que sempre se está nua sob os vestidos. Não. Sentia-se nua como aquela italiana de Verona que ia oferecer-se ao chefe dos que cercavam sua cidade, para libertá-la. Parecia-lhe que também era para resgatar alguma coisa, como a italiana, mas o quê? Como Jacqueline era segura de si mesma, nada tinha a resgatar. Não precisava ser tranquilizada, bastava-lhe um espelho. O olhava-a com humildade imaginando que, se não se quisesse passar vergonha, só se poderia oferecer-lhe flores de magnólia, porque suas pétalas espessas e foscas transformam-se suavemente em bistre quando murcham; ou então camélias, porque um vislumbre rosa mistura-se às vezes à sua cera branca. À medida que o inverno se afastava, a tonalidade suave que dourava a pele de Jacqueline apagava-se com a lembrança da neve. Em breve, só as camélias lhe iriam bem. Mas O teve medo de que Jacqueline zombasse dela, com suas flores de melodrama. Um dia, trouxe-lhe um grande buquê de jacintos azuis, cujo odor é como o das tuberosas e faz virar a cabeça: oleoso, violento, tenaz, exatamente como as camélias deveriam ter e, no entanto, não têm. Jacqueline mergulhou nas flores rijas e frescas seu nariz mongol, seus lábios, há quinze dias pintados de rosa e não mais de vermelho, e disse: "São para mim? ", como costumam fazer as mulheres a quem todo o mundo dá presentes todo o tempo. Depois disse obrigada e em seguida perguntou se René vinha buscar O. "Vem, sim", disse O. Vinha, repetia para si mesma, e era para ele que Jacqueline, falsamente imóvel, falsamente muda, levantaria por um segundo seus olhos de água fria que não olhavam de frente. A ela ninguém precisava ensinar nada: nem a se calar, nem a deixar suas mãos abertas junto ao corpo, nem a inclinar ligeiramente a cabeça. O morria de vontade de segurar, sobre a nuca de Jacqueline, um punhado daqueles cabelos tão claros, de inclinar totalmente aquela cabeça dócil e de acompanhar com o dedo a linha das sobrancelhas. Mas René também teria este desejo. Bem sabia porque, outrora intrépida, tinhase tornado tão timorata; pois há dois meses desejava Jacqueline sem se permitir nenhuma palavra ou gesto que o confessasse e só encontrava débeis motivos para explicar sua reserva.

Não era verdade que Jacqueline fosse intocável. O obstáculo não se encontrava em Jacqueline, mas no próprio coração de O, um obstáculo como nunca antes tinha encontrado. O fato é que René a deixava livre e que detestava sua liberdade. Sua liberdade era pior do que qualquer corrente. Sua liberdade separava-a de René. Dez vezes teria podido, sem sequer falar, segurar Jacqueline pelos ombros e fixá-la à parede com as duas mãos como se faz com uma borboleta e um alfinete. Jacqueline não teria se mexido e nem mesmo sorrido. Mas O sentia-se agora como esses animais selvagens cativos que servem de chamariz para o caçador, ou que cercam para ele a caça, esperando sua ordem para saltar. Era ela quem, às vezes, pálida e trêmula apoiava-se à parede, obstinadamente pregada em seu silêncio, ligada por seu silêncio e bem feliz por se calar. Esperava mais do que uma permissão, pois esta permissão, já a tinha. Esperava uma ordem. Ela não veio de René, mas de Sir Stephen. À medida que se passavam os meses desde que René a tinha dado a Sir Stephen, O percebia com terror a crescente importância que este tomava aos olhos de seu amante. Ao mesmo tempo, aliás, compreendia que provavelmente enganava-se a este respeito, imaginando um progresso no fato ou no sentimento onde só havia progresso no reconhecimento deste fato ou na confissão deste sentimento. Rapidamente percebeu, entretanto, que de agora em diante, para passar a noite com ela, René escolhia as noites, e só estas que se seguiam àquelas em que Sir Stephen a fazia vir (Sir Stephen só ficando com ela até de manhã quando René se ausentava de Paris). Tinha também observado que quando estava presente em algumas dessas noitadas nunca tocava O, a não ser para oferecê-la melhor a Sir Stephen e para mantê-la à sua disposição quando se debatia. Era muito raro que ficasse e só ficava por um pedido expresso de Sir Stephen. Permanecia, então, vestido como da primeira vez, silencioso, acendendo um cigarro no outro, colocando madeiras no fogo e oferecendo bebida para Sir Stephen; mas ele próprio não bebia. O sentia que ele a observava como um domador observa o animal que ensinou, atento a que lhe dê a honra de sua perfeita obediência, mas também e mais ainda como uma guarda-costas junto a um príncipe, ou como o homem de confiança de algum chefe de tribo vigia a prostituta que foi buscar na rua para ele. A prova de que cedia realmente a uma vocação de servidor ou de acólito é que observava mais o rosto de Sir Stephen do que o seu -- e O, sob seus olhos, sentia-se despojada da própria volúpia em que seus traços se afogavam: ele oferecia a Sir Stephen, que a tinha feito nascer, esta homenagem, com admiração e até gratidão, feliz de que este consentisse em ter prazer com alguma coisa que tivesse lhe dado. Sem dúvida tudo teria sido mais simples se Sir Stephen gostasse de rapazes. O não duvidava de que René, que entretanto não os amava, teria concedido a Sir Stephen desde os menores até os mais exigentes de seus pedidos. Mas Sir Stephen só amava as mulheres. Percebia que, sob as aparências do seu corpo que compartilhavam, atingiam algo mais misterioso e talvez mais agudo do que uma comunhão amorosa, uma união cuja própria ideia lhe era penosa, mas da qual não podia negar a realidade e força. No entanto, por que esta partilha era de alguma forma abstrata? Em Roissy, o tinha pertencido, no mesmo momento e no mesmo ambiente, a René e a outros homens. Por que na presença de outros homens René abstinha-se não apenas de possuí-la, mas também, de dar-lhe ordens? (A única coisa que fazia era transmitir as ordens de Sir Stephen.) Perguntou-lhe isso, sabendo de antemão a resposta. "Por respeito", respondeu. "Mas eu sou sua", disse O. "Você é primeiro de Sir Stephen". E era verdade, pelo menos no sentido em que a entrega que René fizera dela ao seu amigo era absoluta e que os menores desejos de Sir Stephen a seu respeito passavam à frente das decisões de René, ou à frente dos seus próprios desejos. Se René tivesse decidido que iriam jantar e que depois iriam ao teatro e Sir Stephen telefonasse uma hora antes para pedir O, René vinha buscá-la no estúdio como tinham combinado, mas para conduzi-la até a porta de Sir Stephen e deixá-la ali. Uma vez, uma única vez, O tinha pedido a René que solicitasse a Sir Stephen que mudasse o dia, pois desejava muito acompanhá-lo à reunião onde tinham combinado irem juntos. René tinha-se recusado. "Minha queridinha", dissera, "você ainda não compreendeu que não se pertence mais, e que o senhor que dispõe de você não sou mais eu? " Não apenas tinha se recusado, mas ainda prevenira Sir Stephen sobre o pedido de O e, diante dela, tinha-lhe pedido que a punisse com crueldade suficiente para que nunca mais ousasse sequer imaginar que poderia esquivar-se. "Certamente", respondera Sir Stephen. Isso tinha acontecido no pequeno cômodo oval com assoalho de mármore e um único móvel, que era um aparador negro incrustado de nacre, que dava para a grande sala amarela e cinza. René só demorou os minutos necessários para trair O e escutar a resposta de Sir Stephen. Logo depois cumprimentou-o com a mão, sorriu para O e partiu. Ela ainda o avistou pela janela quando atravessava o pátio; ouviu-o bater a porta do carro, o motor roncar, e percebeu sua própria imagem num pequeno espelho incrustado na parede; estava branca de desespero e de medo. Depois, quando passava na frente de Sir Stephen que abria para ela a porta que dava para a sala e a esperava, olhou-o maquinalmente: estava tão pálido quanto ela. Nesse momento, como um relâmpago, foi atravessada pela certeza de que ele a amava, que em seguida se dissipou. Embora não o acreditasse e ainda se recriminasse por tê-lo imaginado, isto a reconfortou e, a um gesto dele, tirou a roupa docilmente. Então, e pela primeira vez desde que Sir Stephen a fazia vir duas ou três vezes por semana usando-a lentamente, muitas vezes fazendo com que esperasse nua por uma hora antes de aproximar-se, escutando sem nunca responder às suas súplicas, pois às vezes suplicava, repetindo as mesmas injunções nos mesmos momentos _ como num ritual, tão bem sabia quando sua boca devia acariciá-lo e quando, de joelhos, com a cabeça afundada na seda do sofá devia oferecer-lhe apenas suas nádegas -- que agora possuía sem ferir mais, de tal modo tinha-se aberto para ele, pela primeira vez, então, apesar do medo que a decompunha, ou talvez mesmo por causa deste medo, apesar do desespero onde a tinha jogado a traição de René, mas talvez também por causa deste desespero, entregou-se completamente. E pela primeira vez, tão doces eram seus olhos que, ao encontrarem os olhos claros e ardentes de Sir Stephen, consentiam, que ele falou em francês, com muita intimidade. "O", disse, "vou ter que amordaçá-la pois gostaria de chicoteá-la até o sangue. Permite? " "Eu sou sua", disse O. Estava de pé no meio da sala com os braços levantados e unidos que os braceletes de Roissy mantinham presos à argola do teto, onde antigamente havia um lustre, por uma pequena corrente, o que fazia seus seios saltarem. Sir Stephen acariciou-os, beijou-os e depois beijou sua boca uma vez, dez vezes. (Nunca antes a tinha beijado.) E quando finalmente colocou a mordaça que encheu sua boca com um gosto de pano molhado, empurrando sua língua para o fundo da garganta de modo a que seus dentes só pudessem mordê-la, docemente segurando-a pelos cabelos. Balançando na corrente, O oscilava sobre seus pés nus. "O, perdoe-me", murmurou (nunca tinha lhe pedido perdão); depois afastou-se e bateu. Quando René voltou para a casa de O, depois da meia-noite, após ter ido sozinho à reunião onde deveriam ter ido juntos, encontrou-a deitada, tremendo no náilon branco de sua longa camisola. O próprio Sir Stephen a tinha trazido, deitado e, mais uma vez, beijado. O contou-lhe tudo. Disse-lhe também que não desejava mais desobedecer a Sir Stephen, compreendendo que René concluiria que lhe era necessário e doce ser batida, o que era verdade (mas esta não era a única razão). Tinha certeza, além disso, de que para René também era necessário que lhe batessem. Tanto tinha horror em lhe bater, a ponto de nunca poder resolver-se a fazê-lo, quanto amava vê-la debater-se e ouvi-la gritar. Só uma vez, diante dele, Sir Stephen usara a chibata. René tinha inclinado O sobre a mesa mantendo-a imóvel e, num momento em que sua saia escorregou, levantara-a novamente. Talvez tivesse até mais necessidade ainda da ideia de que enquanto não estava com ela, enquanto passeava ou trabalhava, O se contorcia, gemia e chorava sob o chicote, pedindo sua piedade sem obtê-la e sabendo que esta dor e esta humilhação eram-lhe infligidas pela vontade do amante a quem amava, e para o seu prazer. Em Roissy tinha feito com que os criados a chicoteassem. Em Sir Stephen tinha encontrado o senhor rigoroso que ele próprio não sabia ser. O fato de que o homem que mais admirava no mundo se deleitasse com ela e desse ao trabalho de torná-la dócil, aumentava, via-se bem, a paixão de René por ela. Todas as bocas que tinham perscrutado sua boca, todas as mãos que tinham agarrado seus seios e seu ventre, todos os sexos que a tinham penetrado e que haviam provado tão perfeitamente que estava prostituída, tinham-na ao mesmo tempo, de alguma forma, consagrado. Mas tudo isso não era nada aos olhos de René, ao lado da prova que lhe dava Sir Stephen. Todas as vezes em que saía de seus braços, René procurava nela a marca de um deus. O sabia que, se a traíra algumas horas antes, era para provocar novas marcas, ainda mais cruéis. Sabia também que as razões para provocá-las podiam desaparecer mas que Sir Stephen não voltaria atrás. Tanto pior. (Mas, na verdade, tanto melhor, pensava). René, perturbado, olhou durante muito tempo o corpo delgado onde grossas cicatrizes violetas pareciam cordas passadas sobre os ombros, as costas, as nádegas, o ventre, os seios e que às vezes se cruzavam. Em um ou outro lugar, gotejava um pouco de sangue. "Ah, eu a amo", murmurou. Despiu-se com mãos trêmulas, apagou a luz e deitou-se junto a O, que gemeu no escuro, durante todo o tempo em que ele a possuiu.
As cicatrizes no corpo de O demoraram mais de um mês para se apagarem. Mesmo assim, nos lugares em que a pele tinha arrebentado, ficou uma linha esbranquiçada, como uma cicatriz muito antiga. Mas se pudesse se esquecer, a atitude de René e de Sir Stephen faria com que se lembrasse. René, obviamente, tinha uma chave do apartamento de O. Nunca tinha pensado em dar uma a Sir Stephen, provavelmente porque até agora Sir Stephen não tinha manifestado nenhum desejo de vir à sua casa. Mas o fato de que naquela noite a tivesse trazido, fez com que René compreendesse subitamente que esta porta, que só ele e O podiam abrir, talvez fosse considerada por Sir Stephen como um obstáculo, uma barreira, ou uma restrição desejada por René, e que se tornava derrisório dar-lhe O se não lhe desse ao mesmo tempo a liberdade de entrar em sua casa a qualquer momento. Tendo chegado a esta conclusão, mandou fazer uma chave, entregou-a a Sir Stephen e só a preveniu quando Sir Stephen a aceitou. O nem pensou em protestar e logo percebeu que encontrava na espera da vinda de Sir Stephen uma serenidade incompreensível. Esperou muito tempo, perguntando-se se ele a surpreenderia no meio da noite, se aproveitaria uma ausência de René, se viria sozinho ou mesmo se chegaria a vir. Não ousava falar disso a René. Uma manhã em que por acaso sua faxineira não tinha vindo, e em que tinha se levantado mais cedo do que de costume, quando, às dez horas, já vestida, preparava-se para sair, escutou uma chave rodar na fechadura e atirou-se gritando: "René!" (pois René costumava vir assim às vezes e nesse momento só pensou nele). Era Sir Stephen, que sorriu e disse: "Pois bem, vamos chamar René". Mas René, retido em seu escritório por um encontro de negócios, só poderia chegar dentro de uma hora. O, com o coração batendo forte no peito (e, perguntando-se por que), olhava Sir Stephen que desligava o telefone. Em seguida ele se sentou na cama, tomou sua cabeça entre as mãos e entreabriu sua boca para beijá-la, sufocando-a de tal forma que se não a amparasse ela teria caído. Mas ele a segurou e a levantou. O não podia compreender por que sentia tanta perturbação, por que uma angústia tão grande cerrava sua garganta, pois, afinal, que poderia temer de Sir Stephen que já não tivesse experimentado? Ele pediu-lhe então que ficasse nua e ficou observando-a em silêncio enquanto O obedecia. Não estava habituada a ficar nua sob o seu olhar, como estava habituada ao seu silêncio e a esperar as decisões do seu prazer? Teve que reconhecer consigo mesma que se iludia, e que, se estava perturbada pelo lugar e pela hora, pelo fato de que nesse quarto só ficara nua para René, a razão essencial de sua perturbação era, na verdade, sempre a mesma: a privação da posse de si mesma. A única diferença era que esta privação tornava-se mais sensível pelo fato de que não acontecia num lugar onde de alguma forma ia para sofre-la, nem à noite, participando assim do sonho, ou de uma existência clandestina, com relação à duração do dia, como Roissy tinha sido com relação à duração da sua vida com René. A grande luz de uma manhã de maio entregava o clandestino ao público: de agora em diante a realidade da noite e a realidade do dia seriam a mesma realidade. De agora em diante -- e O pensava: enfim! Daí, sem dúvida, é que nascia a estranha segurança misturada com pavor a que se entregava e que tinha pressentido sem compreender. De agora em diante não haveria mais hiato, tempo morto, remissão. Aquele que se espera, porque se espera, já está presente, já é o senhor: Sir Stephen, muito mais exigente mas muito mais seguro do que René. E por mais apaixonadamente que O amasse René e ele a ela, havia entre eles como uma igualdade (quando não fosse a igualdade de idade), que anulava nela o sentimento de obediência, a consciência da sua submissão. Queria imediatamente o que lhe pedia, unicamente porque lhe pedia. Mas parecia que René tinha lhe comunicado, com relação a Sir Stephen, sua própria admiração, seu próprio respeito. Obedecia às ordens de Sir Stephen como ordens enquanto tais, e era-lhe reconhecida porque ele as dava. Quer ele falasse com ela em francês ou em inglês, com intimidade ou com cerimônia, ela sempre o chamava de Sir Stephen, como uma estrangeira ou como uma serva. Pensava que a palavra "Senhor" seria mais conveniente se ousasse pronunciá-la assim, como lhe convinha, diante dele, a palavra escrava. Pensava também que tudo estava certo, já que René se sentia feliz por amar nela a escrava de Sir Stephen.

Com suas roupas colocadas ao pé da cama, tendo posto seus chinelos de saltos altos, esperou então, com os olhos baixos, diante de Sir Stephen que estava apoiado à janela. O sol forte atravessava as cortinas de musselina de bolinhas e vinha esquentar seus quadris. O não procurava uma postura, mas pensava rapidamente que deveria ter se perfumado mais, que não tinha maquilado a ponta dos seios e que, felizmente, tinha seus chinelos, pois o esmalte de suas unhas começava a descascar. De repente tomou consciência de que o que esperava de fato, neste silêncio, nesta luz, e que não confessava, era que Sir Stephen lhe desse a ordem de ficar de joelhos diante dele para abrir sua calça e acaricia-lo. Mas não. Por ter pensado isto, tornou-se púrpura e, ao mesmo tempo que enrubescia, sentia-se ridícula por enrubescer: quanto pudor numa prostituta! Neste momento, Sir Stephen pediu a O que se sentasse à penteadeira para escutá-lo. A penteadeira não era uma penteadeira propriamente dita, mas uma mesinha baixa na parede sobre a qual estavam colocados frascos e escovas ao lado de um grande espelho Restauração onde O podia ver-se inteira, sentada numa poltrona baixa. Sir Stephen ia e vinha às suas costas enquanto falava; seu reflexo atravessava de tempos em tempos o cristal, por trás a imagem de O, mas num reflexo que parecia longínquo, porque a água do espelho era verde e um pouco turva. O, com as mãos abertas e os joelhos separados, gostaria de segurar o reflexo e de imobilizá-lo para responder mais facilmente, pois Sir Stephen, num inglês preciso, fazia perguntas sobre perguntas, as últimas que O poderia imaginar que fizesse. Mal tinha começado, entretanto, interrompeu-se para derrubar O na poltrona, fazendo-a escorregar para a frente; com a perna esquerda levantada sobre o braço da poltrona e a outra ligeiramente dobrada, ficou assim, exposta no espelho ao seu próprio olhar e ao olhar de Sir Stephen, tão perfeitamente franqueada como se um amante invisível tivesse acabado de retirar-se dela, deixando-a assim, entreaberta. Sir Stephen recomeçou suas perguntas, com a firmeza de um juiz e uma habilidade de confessor. O não o via falar para responder. Se, desde que voltara de Roissy, tinha pertencido a outros homens além de René e ele próprio? Não. Se tinha desejado pertencer a outros que tivesse encontrado? Não. Se costumava acariciar-se à noite, quando estava só? Não. Se tinha amigas por quem se deixava acariciar ou a quem acariciava? Não (o não era mais hesitante). Mas, amigas a quem desejasse? Bom, havia Jacqueline, embora dizer amiga fosse demais. Colega seria mais correto, ou ainda companheira, como as moças bem-educadas se nomeiam entre si nos pensionatos de bom-tom. A este respeito, Sir Stephen perguntou-lhe se tinha fotos de Jacqueline e ajudou-a a levantar-se para ir buscá-las. Foi na sala que René encontrou-os quando entrou ofegante por ter subido os quatro andares correndo: O estava de pé diante da grande mesa onde brilhavam, brancas e negras como poças de água na noite, todas as imagens de Jacqueline. Sir Stephen, meio sentado sobre a mesa, pegava uma por uma à medida que O as entregava, colocando-as sobre a mesa; a outra mão penetrava sob o seu ventre. Desde esse momento, Sir Stephen, que sem deixá-la disse bom dia a René -- chegou a sentir que sua mão a penetrou mais fundo, não se dirigiu mais a ela, mas só a René. A razão disto pareceu-lhe clara: René presente, o acordo entre Sir Stephen e ele a seu respeito se estabelecia, mas fora dela, sendo ela apenas a oportunidade ou o objeto que não tinham mais que questionar e que nada mais tinha a responder. O que devia fazer, e até mesmo o que devia ser, era decidido sem sua participação. Aproximava-se o meio-dia. O sol, caindo em cheio sobre a mesa, enrolava a extremidade das fotos. O queria mudá-las de lugar e esticá-las para evitar que fossem destruídas, incerta de seus gestos e na iminência de gemer, de tal modo a mão de Sir Stephen a queimava. Não conseguiu, com efeito gemeu, e deu por si deitada de costas sobre a mesa, no meio das fotos, onde Sir Stephen, deixando-a, a tinha jogado bruscamente, com as pernas abertas e pendentes. Seus pés não tocavam o chão e um dos seus chinelos escapou caindo sem ruído sobre o tapete branco. Seu rosto encontrava-se diretamente sob o sol: fechou os olhos.        Deveria lembrar-se mas muito mais tarde, pois no momento isso não a impressionou, de que assim deitada assistiu ao diálogo entre Sir Stephen e René, como se não lhe dissesse respeito -- e ao mesmo tempo como um acontecimento já vivido. E era verdade que já tinha vivido uma cena análoga: quando René a levara pela primeira vez à casa de Sir Stephen tinham conversado sobre ela do mesmo modo. Mas, daquela primeira vez, não conhecia Sir Stephen e entre os dois, era René quem falava mais. Desde então, Sir Stephen tinha-a submetido a todas as suas fantasias, tinha-a moldado à sua medida, tinha exigido e obtido dela como algo natural as mais ultrajantes aquiescências. Não tinha mais nada a entregar que já não possuísse. Pelo menos era o que acreditava. Agora falava, ele que geralmente era tão silencioso diante dela, e suas palavras, como as de René quando respondia, mostravam que retomavam uma conversa frequente entre eles, na qual era ela o assunto. Tratava-se do melhor partido que se podia tirar dela e de pôr em comum o que o uso que dela faziam tinha ensinado a cada um. Sir Stephen reconheceu que certamente O era infinitamente mais sedutora quando seu corpo apresentava marcas, quaisquer que fossem, nem que fosse apenas porque estas marcas faziam com que não pudesse trapacear e indicassem imediatamente, ao serem vistas, que a seu respeito tudo era permitido. Porque saber era uma coisa: ter a prova disto, uma prova constantemente renovada, outra coisa. René tivera razão ao desejar que fosse chicoteada, disse Sir Stephen. Decidiram que continuaria a sê-lo, independentemente do prazer que se poderia ter com seus gritos e suas lágrimas, e tão frequentemente quanto fosse necessário para que sempre subsistisse nela algum sinal. O escutava imóvel, sempre caída e ardente, e parecia-lhe que Sir Stephen, por uma estranha substituição, falava por ela e no seu lugar; como se ele próprio estivesse no seu corpo e tivesse experimentado a inquietação, a angústia, a vergonha, mas também o orgulho secreto e o prazer dilacerante que experimentava, particularmente quando estava sozinha na rua no meio dos passantes, ou quando subia num ônibus, ou encontrava-se no estúdio com as manequins e os maquinistas, pensando que qualquer um dos seres com quem estava, se lhe acontecesse algum acidente e que se encontrasse estendido ao chão e fosse chamado o médico, guardaria, mesmo desmaiado e nu, o seu segredo, mas ela não; seu segredo não dependia apenas do seu silêncio, não dependia apenas dela. Mesmo que tivesse vontade, não podia permitir-se o menor capricho -- e este era o sentido de uma das questões de Sir Stephen, sem que tivesse percebido isto imediatamente, não podia permitir-se os atos mais inocentes, como jogar tênis ou nadar. Era-lhe doce que isto lhe fosse proibido materialmente, como a grade do convento proíbe materialmente as moças enclausuradas de se pertencerem e de fugirem. Por esta mesma razão, como arriscar as chances de que Jacqueline não a recusasse sem correr, ao mesmo tempo, o risco de ter que explicar-lhe, se não a verdade, pelo menos uma parte da verdade? O sol tinha se movido e deixado seu rosto. Seus ombros colavam-se à película das fotos sobre as quais estava deitada; sentiu contra seus joelhos a borda áspera do casaco de Sir Stephen que se aproximava, junto com René. Colocaram-na de pé, segurando cada um uma de suas mãos. René apanhou seu chinelo. Era preciso vestir-se. Foi durante o almoço em Saint-Cloud, às margens do Sena, que Sir Stephen, novamente a sós com ela, recomeçou a interrogá-la. Ao pé de uma sebe de linguísticas que delimitava o terraço sombreado onde estavam agrupadas as mesas do restaurante cobertas de toalhas brancas, havia uma platibanda de peônias vermelho-escuras, recém-abertas. O levou muito tempo para esquentar, com suas coxas nuas na cadeira de ferro onde se sentara obediente, levantando suas saias antes mesmo que Sir Stephen lhe fizesse sinal. Ouvia-se o murmúrio da água contra os barcos presos a uma plataforma de tábuas no fim da esplanada. Sir Stephen olhava para O que falava lentamente, decidida a não dizer uma palavra que não fosse verdadeira. O que Sir Stephen queria saber era por que Jacqueline lhe agradava. Ah! Não era difícil: era porque era bela demais para O, como as bonecas que são dadas às crianças pobres, tão grandes como elas, e nas quais não ousam tocar. Ao mesmo tempo sabia muito bem que se não se aproximava dela e se não lhe falava, era porque não tinha realmente este desejo. Neste momento, ergueu os olhos que tinha mantido abaixados para as peônias e percebeu que Sir Stephen olhava fixamente para seus lábios. Estaria escutando, ou apenas estaria atento ao som da sua voz, ao movimento dos seus lábios? Calou-se bruscamente e Sir Stephen ergueu os olhos e encontrou o seu próprio olhar. O que leu nele neste momento foi tão claro e foi tão claro para ele que ela realmente o percebera, que foi sua vez de empalidecer. Se a amava perdoar-lhe-ia por ter percebido? Não conseguia desviar os olhos, nem sorrir ou falar. Se a amava o que teria mudado? Se a tivessem ameaçado de morte, ficaria do mesmo modo incapaz de um gesto, incapaz de fugir; seus joelhos não a teriam levado. Sem dúvida nunca iria querer dela mais do que a submissão ao seu desejo, enquanto seu desejo durasse. Mas seria apenas esse desejo motivo suficiente para explicar que, desde o dia em que René a tinha entregado, a solicitasse e a retivesse cada vez mais frequentemente, às vezes só por sua presença, sem nada lhe pedir? Ele estava diante dela, mudo e imóvel como ela; à mesa vizinha, alguns homens de negócios discutiam, bebendo um café tão preto e tão forte que seu perfume chegava até sua mesa. Duas americanas, desdenhosas e bem arrumadas, já acendiam seus cigarros no meio da refeição. O cascalho rangia sob os passos dos garçons _ um deles adiantou-se para encher novamente o copo de Sir Stephen, já vazio de três quartos, mas por que dar de beber a uma estátua, a um sonâmbulo? Não insistiu. O sentiu com delícias que, se o olhar cinzento e ardente deixava seus olhos, era para fixar-se em suas mãos, nos seus seios e, finalmente, para voltar aos seus olhos. Afinal viu nascer uma sombra de sorriso ao qual ousou responder. Mas era impossível pronunciar uma única palavra. Mal podia respirar. "O ...", disse Sir Stephen. "Sim", disse O, sentindo-se fraca. "O, o que vou dizer-lhe agora foi decidido junto com René. Mas eu também..." E interrompeu. O nunca soube se foi porque fechara os olhos de sobressalto, ou porque ele também sentia que lhe faltava o fôlego. Ele esperou. O garçom mudava os pratos e trazia o cardápio para O escolher a sobremesa. O entregou-o a Sir Stephen. Um souflé? Sim, um souflé. Demora vinte minutos. Está bem, vinte minutos. O garçom partiu. "Preciso mais do que vinte minutos", disse Sir Stephen. E o que disse com uma voz igual, logo provou a O que pelo menos uma coisa era certa: se ele a amava, nada seria mudado por isso, a não ser que se considerasse como mudança este curioso respeito e este ardor com os quais lhe dizia: "Ficaria feliz se quisesse...", em vez de simplesmente ordena-lhe que cedesse aos seus pedidos. Tratava-se, no entanto, realmente, de ordens às quais nem se cogitava que O pudesse subtrair-se. Ela fez esta observação e Sir Stephen concordou. "Mesmo assim responda", disse. "Farei o que quiser", respondeu O, e escutou de volta o eco que dizia: "Farei o que quiser", costumava dizer a René. Murmurou: "René..." Sir Stephen escutou. "René sabe o que quero de você. Escute-me". Falava em inglês, mas com uma voz baixa e surda que não se podia escutar nas mesas vizinhas. Parava quando os garçons se aproximavam, recomeçando no meio da frase, quando se afastavam. O que dizia parecia insólito neste lugar público e tranquilo, no entanto o mais insólito era, sem dúvida, que pudesse dize-lo e O escutá-lo com tanta naturalidade. Lembrou-lhe primeiramente que na primeira noite em que tinha vindo à sua casa, tinha lhe dado uma ordem à qual ela não obedecera e observou que, embora a tivesse esbofeteado nessa ocasião, nunca mais tinha renovado sua ordem. Conceder-lhe-ia, de agora em diante, o que tinha então recusado? O compreendeu que não bastava apenas aquiescer, mas que ele queria escutar de sua própria boca, nos seus próprios termos, que sim, que se acariciaria todas as vezes que lhe pedisse. O concordou e reviu a sala amarela e cinza, a partida de René, sua revolta da primeira noite, o fogo que brilhava entre seus joelhos abertos quando estava deitada nua sobre o tapete. Esta noite, nesta mesma sala... Mas não, Sir Stephen não precisava, e continuava. Observou também que na sua presença nunca tinha sido possuída por René (nem por mais ninguém), como tinha sido por ele, na presença de René (e em Roissy por muitos outros homens). Não deveria concluir que só de René lhe viria a humilhação de entregar-se a um homem que não a amava -- e talvez de sentir prazer _ diante de um homem que a amava. (Insistia, tão longamente, tão brutalmente: logo abriria seu ventre, suas nádegas e sua boca aos seus amigos que a desejassem, quando a tivessem encontrado, que O duvidava que esta brutalidade não se dirigisse tanto a ela quanto a ele próprio e reteve apenas o fim da frase: um homem que a amava. Que outra confissão podia ainda querer?) Aliás, ele próprio a levaria de volta a Roissy, durante o verão. Nunca tinha se admirado com o isolamento em que primeiro René e depois ele a mantinham? Via-os sempre sozinhos, às vezes juntos, às vezes alternadamente. Quando Sir Stephen recebia, em sua casa da rua de Poitiers, não convidava O . Nunca tinha almoçado ou jantado em sua casa. René também nunca a tinha apresentado a seus amigos além de Sir Stephen. Certamente continuaria mantendo-a isolada, pois de agora em diante Sir Stephen tinha privilégio de dispor dela. Que não pensasse que por lhe pertencer, isto significaria um caráter privativo; ao contrário. (Mas o que tocava o coração de O é que Sir Stephen ia ficar com ela como René ficava, exatamente, identicamente). O anel de ferro e de ouro que usava na mão esquerda e que não podia tirar. Lembrava-se de como tinha sido escolhido tão justo que fora necessário forçar para fazê-lo entrar no seu anular. Sinal de que era uma escrava, mas uma escrava comum. O acaso tinha querido que desde o outono não tivesse encontrado filiados de Roissy que tivessem observado seus ferros ou manifestado que os tinham observado. A palavra ferros, usada no plural, onde tinha visto um equívoco quando Sir Stephen lhe dissera que os ferros iam-lhe bem, não era de modo algum um equívoco, mas uma fórmula de reconhecimento. Sir Stephen não tinha necessitado utilizar a segunda fórmula: ou seja, de quem eram os ferros que usava. Mas se atualmente a questão fosse colocada a O, que responderia? Hesitou. "A René e a você", falou. "Não", disse Sir Stephen, "a mim. René deseja que dependa primeiramente de mim". O sabia muito bem, então por que trapaceava? Daqui a algum tempo, em todo caso antes que voltasse a Roissy, teria que aceitar uma marca definitiva, que não a dispensaria de ser uma escrava comum, mas que a designaria, além disso, como escrava particular, a sua, e ao lado da qual, as marcas do chicote ou da chibata sobre seu corpo, mesmo que fossem renovadas, seriam discretas e fúteis. (Mas que marca, em que consistiria, como seria definitiva? Aterrorizada, fascinada, O morria de necessidade de saber, e de saber imediatamente. Mas era evidente que Sir Stephen não iria explicar nada, ainda. E era verdade que teria que aceitar, consentir, no verdadeiro sentido da palavra, pois nada lhe seria infligido à força, nada que não tivesse consentido antes. Podia recusar; coisa alguma a retinha na sua escravidão além de seu amor e da sua própria vontade. O que a impedia de partir?) Entretanto, antes que esta marca lhe fosse imposta, antes mesmo que Sir Stephen adquirisse o hábito de chicoteá-la, como tinha sido decidido com René, de tal modo que as marcas ficassem constantemente visíveis, ser-lhe-ia dado um sursis -- o tempo necessário para convencer Jacqueline a se entregar. Neste momento, O levantou a cabeça admirada e olhou para Sir Stephen. Por quê? Por que Jacqueline? E se Jacqueline interessava a Sir Stephen, por que com relação a O? "Por dois motivos", disse Sir Stephen. "O primeiro, e o menos importante, é que desejo vê-la beijar e acariciar uma mulher". "Mas admitindo que me queira", gritou O, "como quer que obtenha seu consentimento para sua presença?" "Isso é pouca coisa", disse Sir Stephen, "se for necessário à traição, e estou certo de que obterá muito mais, pois o segundo motivo pelo qual desejo que Jacqueline lhe pertença, é que teremos que levá-la a Roissy". O depositou a xícara de café que tinha na mão, tremendo tanto que derrubou sobre a toalha o fundo com borra e açúcar misturados que tinha sobrado. Como uma advinha, via na mancha escura que crescia, imagens insuportáveis: os olhos gelados de Jacqueline diante do criado Pierre, suas nádegas, que O não conhecia, certamente tão douradas quanto seus seios, oferecidas em seu grande vestido de veludo vermelho levantado, as lágrimas sobre a penugem do rosto, sua boca pintada aberta num grito, seus cabelos lisos como palha ceifada sobre a testa; não, era impossível; não ela, não Jacqueline. "Não é possível", disse. "Sim", replicou Sir Stephen. "E como pensa que se recrutam as moças para Roissy? Assim que a tiver trazido, não terá mais nada com isto e, aliás, se quiser, poderá partir. Venha". Tinha se levantado bruscamente, deixando sobre a mesa o dinheiro da conta. O seguiu-o até o carro, subiu e sentou. Assim que entraram no Bois, Sir Stephen fez um desvio para estacionar numa pequena alameda, e tomou-a em seus braços.





No comments:

Post a Comment