UM
DIA, NO AUGE DE UMA CRISE de ciúme por uma mulher, ciúme patológico,
lupiciniano, arrasador, ouvi do meu psicanalista, ou melhor, de sua voz
incorpórea atrás do divã onde duas vezes por semana eu deitava meu coração
partido, a menção à origem arquetípica do ciúme. Tudo começou com a expulsão do
regaço quentinho da mãe diante da chegada peremptória do pápi fodão. Você não
cabia na relação deles. Você virou o terceiro excluído. O pai é o galo do
terreiro. E você foi arrancado sem conversa dos braços do objeto único do seu
desejo simbiótico, oceânico: a mulher da qual você saiu outro dia mesmo, la
mamma mia – e sua. Dentro dela era o éden que todos conhecemos, mas do qual
ninguém se lembra se não estiver viajando de ácido numa piscina de água
morninha.
Ali
que era bom. Não vinha ninguém disputar com você o amor visceral pela mãe. A
véia era toda sua. Até o dia em que uns caras de avental, máscara e touca
cismaram de te puxar de lá de dentro. Ciúme, então, seria isso: o retorno do
“terceiro excluído”: papai mandando bala na mamãe, e você de fora, chupando o
dedo. Ou a idiota da chupeta. Saber que o meu ciúme sinalizava o retorno do
terceiro excluído não me deixava menos enciumado. Mas acho que passou a doer um
pouco menos. Hippies e anarquistas foram terceiros excluídos, como qualquer
gerente de banco. Cafetões foram terceiros excluídos. Padres, rabinos e vestais
gregas idem. O Sarney foi terceiro excluído. Nabucodonosor também – ambos na
mesma época, calculo.
Por
essa e por outras é que eu admiro um tipo como o artista plástico americano
Jeff Koons, que andou por aqui outro dia mesmo, convidado para as comemorações
dos 60 anos da Bienal de São Paulo. Koons se casou e teve filho com uma mulher
pública e notória, a Cicciolina, nos anos 80. Você deve se lembrar da
Cicciolina, nome de guerra de Ilona Staller, a desenvolta atriz pornô húngara, radicada
na Itália, que chegou a se eleger deputada no Parlamento italiano pelo Partido
Radical. Puta deputada, diziam, embora não tenha mais conseguido se reeleger.
Isso, sem deixar de protagonizar os filmes que coproduzia, pérolas da mais alta
cineputaria, como o clássico “Banana e Chocolate”, onde podemos vê-la
saboreando uma variedade peculiar de Banana Split, que alguns chamariam com
propriedade de Banana Sucked, ou o inolvidável “Ascensão e queda da imperatriz
romana,” no qual contracenou inadvertidamente com John Holmes, ator pornô que
viria a morrer de Aids, célebre por sua descomunal ferramenta de trabalho.
Na
época do seu relacionamento com a vibrante Cicciolina, Koons produziu uma série
de esculturas, pinturas e fotografias onde o vemos em franca e forte atividade
sexual com sua legítima patroinha, de modo a incorporar o espectador na sua
intimidade conjugal. Diante do casal Koons-Staller transformado em arte ninguém
se sente o terceiro excluído. Estamos todos incluidíssimos. Não é à toa que Koons
batizou sua série de “Made In Heaven” (“Produzido no Paraíso”), ao exibi-la na
Bienal de Veneza de 1990, fazendo corar até as águas poluídas do Grand Canale.
Hoje as obras valem dezenas de milhões de dólares nos leilões internacionais.
Cicciolinas
à parte, o conceito de terceiro excluído (tertium non datur, em latim) foi
emprestado pela psicanálise à velha lógica aristotélica, segundo a qual ou uma
coisa é A ou não é A. Não pode ser meio A. Não existe uma terceira
possibilidade. Ou seja, ou se é o pai ou não se é o pai. Se for o pai, não é
você o filho. E só o pai é que pode chegar no bem-bom da mâmi. O filho não.
Sorry, é a regra da casa. Os psicanalistas dizem que a gente tem mesmo que ser
excluído da cena primária pra poder encarar a vida adulta e buscar outros rabos
de saia fora de casa. Além de aprender a descolar o leitinho de cada dia de
outra fonte que não a teta da mamãe. (Alguns felizardos conseguem mais tarde
grudar nas tetas da nação, mas esse é outro papo.)
Na
vida real, porém, muita gente passa a vida esperneando contra a exclusão
arcaica, que jamais engoliram. Não por outra razão, o conceito de terceiro
excluído é invocado para explicar uma pá de comportamentos humanos tidos como
aberrantes, além do velho e inevitável ciúme, suprema aberração. O voyeurismo,
por exemplo, poderia ser entendido como o desejo de participar simbolicamente
do casal do qual se foi excluído no passado. A bissexualidade também: seria o
impulso de ora agradar à mãe, ora ao pai, buscando ingresso de qualquer jeito e
maneira no nheconheco conjugal dos genitores. Clubes de swing idem.
Esse
último, aliás, é o caminho mais à mão para se tentar uma reinclusão rapidinha
na tal cena primária (papai traçando mamãe). O sujeito leva a patroa pro swing
porque deseja inconscientemente reproduzir as relações afetivo-sexuais da qual
foi excluído pelo pai, pleiteando, dessa vez com êxito, sua inclusão tardia.
Nem precisa explicar que, nesse esquema, a patroa vira a mãe no inconsciente
traquinas do swingueiro. Agora ele poderá ver sua mãelher sendo desfrutada com
alegre despudor por outro homem sem tomar um chega pra lá do desfrutador. Se
calhar, até entra na dança também, já que há sempre algum orifício sobrando
nessas situações. Sem falar na chance de faturar na boa a mulher do próximo,
sendo que o próximo pode ser justamente o sujeito que está sendo agraciado
naquele mesmo instante por um boquete da parte da sua, com todo respeito,
excelentíssima senhora. Num clube de swing não há terceiros excluídos. Trata-se
de uma rebelião contra a lei excludente do pai e a favor do incesto praticado
com a mãe. E você ainda pode tomar cerveja e uísque à vonts durante a cerimônia
de inclusão.
Algum
terceiro excluído se habilita?
(publicado originalmente na Revista STATUS em Novembro de 2011)
Reinaldo
Moraes (São Paulo, 18 de Janeiro de 1950) é um escritor, roteirista, cronista e
tradutor brasileiro. Estreou na literatura em 1981 com o romance Tanto Faz,
livro que se tornaria cultuado por diversas gerações de leitores. Em 1985
lançou Abacaxi, continuação de seu livro de estreia. Depois dos
primeiros romances, o autor fez uma pausa na literatura e ficou quase duas
décadas sem publicar ficção. Voltou às prateleiras com a narrativa
infanto-juvenil A Órbita dos Caracóis (2003), seguido pelo volume de
contos Umidade (2005). Em 2009, lançou Pornopopéia, considerado
pela crítica seu melhor livro. O romance de quase quinhentas páginas é uma
viagem alucinada pelo underground paulistano, protagonizado por um cineasta
fracassado que faz vídeos institucionais para sobreviver. Colaborou mensalmente
para a revista Status, com crônicas que foram reunidas no volume Cheirinho
do Amor
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